European Media Freedom Act: a promoção do pluralismo e da transparência no setor mediático em defesa da democracia na Europa

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Naiara Posenato*

Espera-se para 2023 a aprovação do European Media Freedom Act, cuja proposta, sob forma de regulamento, foi apresentada em setembro de 2022 pela Comissão Europeia a fim de estabelecer “um quadro comum para os serviços de comunicação social no mercado interno”. A Proposta de Regulamento Liberdade dos Meios de Comunicação Social foi acompanhada por uma Recomendação não vinculante e já operativa, dirigida às empresas de comunicação social, contendo boas práticas para promover a independência editorial e a transparência da propriedade dos meios de comunicação.

A necessidade de um tratamento específico para a indústria mediática no âmbito da União Europeia decorre do papel crucial que desempenham os atores presentes setor para a promoção da democracia entre os Estados membros, garantindo aos cidadãos e empresas o acesso a uma pluralidade de fontes confiáveis, além de configurar um setor econômico de importância considerável na Europa.

Para evitar distorções no setor, que prejudicariam o ambiente democrático e o próprio Estado de Direito, é necessário garantir o pluralismo e a independência dos meios de comunicação social na UE protegendo a independência dos editores, evitando que meios de comunicação social público transformem-se em canais de propaganda, a instrumentalização de órgãos com indicações políticas, eliminando interferências e garantindo que os jornalistas não sejam controlados pelo trabalho que exercem. Ao mesmo tempo, em linha com a transição digital, revelou-se necessário limitar o poder das “plataformas em linha de muito grande dimensão” ou VLON (do acrônimo em inglês Very Large Online Companies), e intervir contra a moderação e remoção injustificada de conteúdos mediáticos.

Ainda em fase de discussão, a Proposta reconecta-se com diversos instrumentos precedentes, formando um quadro normativo amplo e complexo. Inicialmente, a intervenção europeia no domínio da mídia limitou-se ao setor audiovisual, com a promulgação em 2010 da “Diretiva Serviços de Comunicação Social Audiovisual” – Diretiva 2010/13/EU, cuja revisão foi realizada em 2018 pela Diretiva (UE) 2018/1808 para atualizar a normativa segundo a estratégia para o Mercado Comum Digital. De fato, o setor mediático foi fortemente influenciado pela transição digital sobretudo a partir da última década: baste pensar que atualmente na Europa o volume preponderante das informações é veiculado através da rede. Ademais, além dos operadores tradicionais, surgiram novos “intermediários de informação” que, uma vez convertida a realidade analógica em dados digitais escritos, sonoros e audiovisuais, os reproduzem e comunicam usando os novos avanços tecnológicos. São, por exemplo, motores de busca e plataformas online que disponibilizam espaços de comunicação ao utilizador, como social networks. As organizações e jornalistas tem sua sustentabilidade afetada pelo domínio dos grandes operadores online no mercado de publicidade digital (Google, Meta) e pela crescente presença dessas plataformas na entrega de notícias.

A Proposta de Regulamento, que vem ao encontro da necessidade de garantir o funcionamento independente e correto dos meios de comunicação social, está diretamente relacionada com o exercício da liberdade de expressão e as suas limitações, em especial no que concerne o direito à pluralidade das fontes informativas (art. 11 – Liberdade de Expressão e Informação, para. 2, da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia). O respeito à liberdade e a o pluralismo mediático presente no texto europeu constitui uma novidade, por exemplo, com relação ao art. 10 da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, e é entendido como liberdade de imprensa e necessidade da pluralidade de meios de comunicação. Como especificou o Relatório sobre o Estado de Direito na União de 2022 – COM(2022) 500 final, de 13 de julho de 2022 “Os meios de comunicação social independentes e livres são os guardiães da democracia. Um ambiente mediático livre e pluralista contribui para a defesa do Estado de direito mediante a responsabilização do poder e das instituições. A pressão ou o controlo político ou estatal sobre os meios de comunicação social compromete tanto a liberdade de opinião e de expressão como a liberdade de procurar, receber e divulgar informações. Os conflitos de interesses e um mercado altamente concentrado, dominado por apenas alguns intervenientes, podem igualmente comprometer a liberdade dos meios de comunicação social.” Através da monitoração do meios de comunicação social na Europa, o mesmo Relatório apontou que a concentração de tais meios, que constitui um indicador para avaliar a liberdade e o pluralismo no setor, revela uma situação de risco médio em todo o continente europeu, e de risco elevado em alguns países da Europa central, como Bulgária, Grécia, Hungria, Malta, Polônia,  Romênia e  Eslovênia.

Nos últimos anos, uma intervenção direta sobre questões mediáticas na União europeia foi realizada mediante atos de soft law, como a Resolução do Parlamento Europeu de 2018 sobre Pluralismo e liberdade dos meios de comunicação social na União Europeia, a Comunicação da Comissão Europeia de 2020 sobre o Plano de Ação para a democracia europeia, a Comunicação da Comissão Europeia de 2021 “Orientações para a Digitalização até 2030: a via europeia para a Década Digital”, entre outros. Algumas questões também foram abordadas indiretamente, por meio de legislação colateral, como a Diretiva (EU) 2019/790 relativa aos direitos de autor e direitos conexos no mercado único digital (também conhecida como Diretiva Copyright) e o pacote Digital Services Act e Digital Markets Act. A Proposta European Media Freedom Act aborda questões setoriais remanescentes, ou seja, que os dois últimos instrumentos horizontais não tratam plenamente.  No domínio da transparência da propriedade, apresenta sinergias com a Diretiva Branqueamento de Capitais (Diretiva (UE) 2015/849) e a Diretiva Direito das Sociedades (Diretiva (UE) 2017/1132). No que diz respeito às fontes jornalísticas, o regulamento acrescenta uma garantia sólida e específica contra a instalação de software espião em dispositivos utilizados pelos fornecedores de serviços de comunicação social ou pelos seus funcionários, com base nas proteções já previstas na Diretiva 2002/58/CE, na Diretiva (UE) 2016/680 e na Diretiva 2013/40/EU. Um dos maiores desafios da nova normativa, uma vez aprovada, será justamente aquele de coordenar-se de forma eficaz com o acquis communautaire no setor.   

Em geral, a European Media Freedom Act aborda diversas questões estratégicas: define alguns direitos e obrigações fundamentais para os fornecedores de serviços mediáticos, como a proteção da independência editorial por parte dos Estados-membros, que devem evitar adotar medidas que interfiram de qualquer forma nas políticas e decisões editoriais (art. 4, a e b da Proposta de Regulamento), e a maior proteção às fontes jornalísticas, por exemplo através de medidas contra a utilização de software espião (art. 4, c). Mas as interferências sobre a liberdade editorial também podem vir da esfera privada, por exemplo das pessoas físicas e jurídicas que controlam a propriedade do meio de informação. Portanto, segundo a Proposta, os fornecedores de meios de comunicação social devem fornecer regularmente informações-chave para garantir a própria independência, como por exemplo, sobre a relativa propriedade e participações acionárias (art. 6), assim como os fornecedores de serviços públicos de comunicação social estão obrigados a oferecer uma pluralidade informações e opiniões em modo imparcial e nomear o próprio quadro de gestão por meio de procedimentos transparentes, abertos e não discriminatórios (art. 5).

A transparência também orienta as novas regras relacionadas à obrigação de publicar informações sobre serviços de comunicação social beneficiários de publicidade estatal ou serviços análogos (art. 24), introduzidas com a finalidade de não falsear a concorrência entre os fornecedores de comunicação social e de evitar riscos de influencia política indevida.

Foram incluídas obrigações especiais para as plataformas online de grande dimensão, como informar o prestador de serviços de comunicação social das razões que acompanham a decisão de suspensão da prestação dos próprios serviços de intermediação na divulgação de determinados conteúdos; adotar todas as medidas organizacionais e técnicas para assegurar que as denúncias nos termos do art. 11 do Regulamento 2019/1150/UE serão processadas ​​e decididas com prioridade e sem atrasos injustificados; estabelecer um diálogo significativo e eficaz com provedores de serviços de mídia que frequentemente sofrem suspensão ou restrição injustificada de seus serviços de intermediação por plataformas on-line muito grandes; e publicar o número de casos em que impuseram a limitação ou suspensão de seus serviços, juntamente com os motivos dessas restrições (art. 17). Para o consumidor, a Proposta prevê o direito à personalização da oferta audiovisual (art. 19), de modo que os produtores e programadores estão obrigados a garantir uma funcionalidade que permita aos utilizadores modificar e personalizar de modo fácil e livremente os parâmetros predefinidos que regem o consumo da oferta audiovisual.

Enfim, a Proposta prevê a criação do Comitê Europeu dos Serviços de Comunicação social, composto pelas autoridades nacionais do setor mediático, que sucede ao Grupo de Reguladores Europeus dos Serviços de Comunicação Social Audiovisual (ERGA), criado em 2010, conferindo-lhe um âmbito de ação mais vasto, bem como funções adicionais. Dentre elas, a de fornecer assistência à Comissão, elaborando, entre outros, pareceres relativos a concentrações no setor mediático que possam incidir no funcionamento do mercado interno de tais serviços.

Muitos foram as intervenções e feedbacks recebidos após a publicação da Proposta, que atualmente segue o processo legislativo ordinário para aprovação, devendo ser encaminhado proximamente ao Parlamento Europeu e ao Conselho.

 

Veja também:

Data protection implications through an inner-connected world: European Union’s contributions towards the brazilian legislative scenario , Beatriz Graziano Chow e Clarisse Laupman, in Latin American Journal of European Studies, vol. 1, n. 1, 2021

Violência algorítmica e tomada de decisões automatizadas, Gabriel Cemin e Petry Haide Maria Hupffer, Latin American Journal of European Studies, vol. 1, n. 1, 2021

UE pioneira da regulamentação da Inteligência Artificial, Naiara Posenato, Observatory on European Studies, junho 2021

*Naiara Posenato

Professora de Direito Comparado na Università degli Studi di Milano, Itália.