Por Nuno Cunha Rodrigues*
O Conselho Europeu aprovou, no passado dia 10 de dezembro de 2020, um pacote financeiro que visa responder à crise económica causada pelo Covid-19.
Esse pacote é composto pelo:
No primeiro caso – QFP – está em causa a aprovação do instrumento financeiro plurianual da UE, nos termos previstos no artigo 312.º, n.2 2 do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia (TFUE).
Entre outras novidades, o novo QFP 2021-2027 prevê que a UE passe a ser dotada de mais recursos financeiros próprios, incluindo os que decorrem:
No segundo caso – NGEU – prevê-se que sejam distribuídos, entre os Estados-Membros, 312,5 mil milhões de euros em subvenções (a preços de 2018), dos quais 70 % serão autorizados em 2021 e 2022 e 30 % até ao final de 2023. Por outro lado, até ao final de 2023 serão concedidos 360 mil milhões de euros de empréstimos para financiamento adicional de reformas e investimentos.
As verbas do NGEU terão de ser destinadas, em 37%, ao apoio à transição ecológica e, pelo menos 20%, a transformação digital.
Para o efeito, cada um dos Estados-Membros deve preparar e submeter à Comissão Europeia planos nacionais de recuperação e resiliência.
Por outro lado previu-se, pela primeira vez, um mecanismo de condicionalidade relativo à necessidade de todos os Estados-Membros que irão beneficiar dos novos instrumentos de auxílio respeitarem o Estado de Direito (rule of law).
A União Europeia funda-se em valores comuns, afirmados no texto dos Tratados. Entre estes afirmam-se o respeito pela dignidade humana, da liberdade, da democracia, da igualdade, do Estado de direito e do respeito pelos direitos do Homem, incluindo os direitos das pessoas pertencentes a minorias (cfr. artigo 2.º, n.º 1 do Tratado da União Europeia (TUE)).
Estes valores devem ser respeitados pelos Estados-Membros no momento em que aderem à União Europeia (cfr. artigo 49.º do TUE). Os valores foram afirmados nos chamados Critérios de Copenhaga, formulados pelo Conselho Europeu de Copenhaga em 1993 e reforçados pelo Conselho Europeu de Madrid em 1995.
Os critérios de Copenhaga reconduzem-se, basicamente, aos seguintes pontos:
O respeito por estes critérios permitiu, em 2005, que dez novos Estados aderissem à União Europeia, que, nesse momento passou a ter 25 Estados-Membros, no maior processo de alargamento ocorrido.
Certo é que os Estados-Membros devem assegurar o respeito pelos valores comuns da EU. Caso assim não ocorra prevê-se, no artigo 7.º do TUE, dois mecanismos para sancionar o Estado infractor:
Recentemente, a Comissão Europeia iniciou o processo previsto no artigo 7.º, n.º 1 contra a Polónia (em 20 de dezembro de 2017) e a Hungria (em 12 de setembro de 2018).
Sucede que o processo previsto no artigo 7.º é aparentemente ineficaz.
Desde logo porque há falta de vontade política, por parte de muitos Estados-Membros, em fazer avançar o processo, porventura por receio de, no futuro, poderem vir a ser objecto de idêntico procedimento.
Por outro lado, a aplicação do artigo 7.º pressupõe um consenso muito amplo entre Estados (unanimidade, no caso do artigo 7.º, n.º 2 do TUE) o que parece indiciar que este artigo terá sido pensado para situações em que um Estado-Membro desrespeita valores comuns da EU mas não dois ou mais Estados, como acontece no presente momento com a Polónia e a Hungria.
Neste momento verifica-se que parte do chamado grupo de Visegrado (Polónia + Hungria + Estónia) está unido e não permitirá aplicar o artigo 7.º, n.ºs 2 e 3 do TUE.
Aqui chegados, importa averiguar como é que a UE pode agir em caso de violação, por um Estado-Membro, de valores comuns da UE.
Até ao presente momento esse papel tem sido desempenhado pelo Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE).
Por diversas vezes, o TJUE referiu-se a uma Comunidade de Direito não como um simples requisito formal e processual, mas como tendo igualmente um valor substantivo.
Para o TJUE uma «União baseada no Estado de direito» significa que as instituições da UE estão sujeitas não só ao controlo da conformidade dos seus atos com o Tratado, mas também «com os princípios gerais do direito, onde se incluem os direitos fundamentais».[1]
Num passado recente, e num acórdão que envolveu Portugal, o TJUE voltou a pronunciar-se sobre o artigo 2.º do TUE para afirmar “que a confiança mútua entre os Estados‑Membros e, designadamente, os seus órgãos jurisdicionais assenta na premissa fundamental segundo a qual os Estados‑Membros partilham de uma série de valores comuns em que a União se funda, como precisado nesse artigo 2.º TUE.”[2]
Porém, a intervenção do TJUE apenas pode ocorrer na sequência de um procedimento de infração desencadeado na sequência de uma infração a uma disposição específica de Direito da União Europeia.[3]
Foi o que sucedeu com a Polónia e a violação do princípio da separação de poderes, ocorrida no passado.
No acórdão proc. C-619/18 Comissão vs. Polónia o TJUE considerou que ao prever a aplicação da medida que consiste em reduzir a idade de aposentação dos juízes do (…) (Supremo Tribunal, Polónia) aos juízes em exercício que foram nomeados para esse tribunal antes de 3 de abril de 2018 e, por outro, ao conceder ao presidente da República o poder discricionário de prorrogar a função judicial ativa dos juízes do referido tribunal para além da nova idade de aposentação fixada, a República da Polónia não cumpriu as obrigações que lhe incumbem por força do artigo 19.º, n.º 1, segundo parágrafo, TUE.
Face à escassa viabilidade prática de aplicação do artigo 7.º do TUE a Presidência Alemã do Conselho da União Europeia considerou oportuno determinar que os novos instrumentos financeiros (QFP e NGEU) previssem uma regra de condicionalidade que associada a distribuição destes fundos à necessidade de respeito pelo Estado de Direito (Rule of law).
Cedo se percebeu que a Hungria e a Polónia discordavam desta associação o que inviabilizava a aprovação destes instrumentos uma vez que esta depende da regra da unanimidade.
Não obstante foi possível alcançar um consenso entre todos os Estados-Membros, na reunião do Conselho Europeu ocorrida no passado dia 10 de dezembro de 2020, que consta do comunicado então emitido[4] onde se prevê que o mecanismo de condicionalidade previsto no regulamento será aplicado de forma objetiva, equitativa, imparcial e com base em factos, assegurando o respeito das garantias processuais, a não discriminação e a igualdade de tratamento dos Estados-Membros.
Nuno Cunha Rodrigues
*Professor Associado da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa
Cátedra Jean Monnet
Vice-Presidente do Instituto Europeu da Faculdade de Direito de Lisboa
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[1] Cfr. proc. C-50/00 P, Unión de Pequeños Agricultores, Coletânea 2002, p. I- 06677, n.ºs 38 e 39; proc. apensos C-402/05 P e C-415/05 P, Kadi, Coletânea 2008, p. I‑ 06351, n.º 316.
[2] Proc. C-64/16 – Associação Sindical dos Juízes Portugueses:
[3] A este propósito v. ainda, o seguinte conjunto de acórdãos do TJUE: proc. 294/83, «Les Verts»/Parlamento Europeu (“CE é uma comunidade de direito (…) nem os EM nem as instituições estão isentos da fiscalização da conformidade dos seus atos com (…) o Tratado (parágrafo 23)); proc. C-286/12, Comissão/Hungria (igualdade de tratamento no que se refere à reforma obrigatória dos juízes e magistrados do Ministério Público); proc. C‑518/07, Comissão/Alemanha (independência das autoridades responsáveis pela proteção de dados); proc. C-614/10, Comissão/Áustria (independência das autoridades responsáveis pela proteção de dados).
[4] V. https://www.consilium.europa.eu/media/47338/1011-12-20-euco-conclusions-pt.pdf