Nuno Cunha Rodrigues*
Num passado recente, e por forma a dar resposta às questões suscitadas pela economia digital, a União Europeia delineou, em 2020, uma estratégia conhecida por «Construir o futuro digital da Europa» (“Shaping Europe’s Digital Future”) assente em três pilares: (a) A tecnologia ao serviço dos cidadãos; (b) Uma economia digital justa e competitiva e (c) Uma sociedade aberta, democrática e sustentável.[1]
Esta estratégia secundou a aprovação, no passado, de diversa legislação aplicável à economia digital[2] como, entre outros, o conhecido Regulamento Geral de Proteção de Dados (RGPD)[3]; o Regulamento relativo ao livre fluxo de dados não pessoais[4]; o Regulamento sobre cibersegurança[5] ou a Diretiva relativa a dados abertos[6] que procuram, de forma transversal, assegurar a tutela de direitos fundamentais previstos na Carta Europeia.
Não obstante persistiam algumas debilidades e lacunas decorrentes da incapacidade e insuficiência de instrumentos jurídicos clássicos relativamente a estes novos modelos digitais de negócio, nomeadamente no âmbito do Direito da Concorrência. Neste último caso eram apontadas as seguintes três grandes lacunas: (i) o falhanço da Comissão Europeia em fornecer uma tese de dano clara; (ii) a incapacidade da Comissão Europeia em conceber uma solução adequada em mercados de dois lados ou bilaterais e (iii) a longa duração dos processos de investigação e sancionamento.[7]
Não foi por isso com surpresa que, em 2022, foram aprovados (i) o Regulamento n.º 2022/2065 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 19 de outubro de 2022, relativo a um mercado único para os serviços digitais e que altera a Diretiva 2000/31/CE (Regulamento dos Serviços Digitais (DSA) e o Regulamento n.º 2022/1925 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 14 de setembro de 2022, relativo à disputabilidade e equidade dos mercados no setor digital e que altera a Diretiva 2019/1937/EU e a Diretiva 2020/1828/UE (Regulamento dos Mercados Digitais (DMA).
O DSA e o DMA têm dois objetivos principais (i) criar um espaço digital mais seguro no qual sejam protegidos os direitos fundamentais de todos os usuários de serviços digitais e (ii) estabelecer condições equitativas para promover a inovação, o crescimento e a competitividade, tanto no mercado único europeu como globalmente.
O primeiro – Regulamento sobre mercados de serviços digitais (Digital Services Act – DSA) – estabelece obrigações para os prestadores de serviços digitais, como as redes sociais ou os mercados online, para proteger os direitos fundamentais dos consumidores on-line, combater a propagação de conteúdos ilegais, a desinformação online e outros riscos sociais. Este Regulamento entrou em vigor a 25 de agosto de 2023 para as plataformas e motores de pesquisa de muito grande dimensão e, desde 17 de fevereiro de 2024, para todas as restantes entidades.
Por outro lado, no caso específico do Regulamento sobre Mercados Digitais (Digital Markets Act – DMA) procurou-se solucionar a insuficiência dos instrumentos de Direito da Concorrência (ex-post) e de regulação (ex-ante) que revelavam-se inadequados para enfrentar os desafios trazidos pelas plataformas digitais.[8]
No primeiro caso – Direito da Concorrência – porque, como vimos anteriormente, os procedimentos eram lentos em comparação com o ritmo da mudança na economia digital, sendo difícil restaurar a concorrência quando o dano for causado, atendendo a que a política de concorrência clássica, no contexto dos mercados digitais, centra-se no abuso de posição dominante num mercado único relevante sabendo-se que as plataformas são, frequentemente, intermediárias entre vários mercados. No segundo caso – regulação – a emergência de plataformas que possuem uma grande quantidade de dados agravou a assimetria de informação entre plataformas e utilizadores mas também entre reguladores setoriais e as plataformas, atrasando as eventuais respostas regulatórias relativamente a plataformas cujo comportamento se revele anticoncorrencial.
Sucede que todos estes instrumentos normativos revelaram-se insuficientes para assegurar a proteção direta do consumidor em ambiente digital.
Com efeito, na economia digital ocorrem conhecidas práticas lesivas dos direitos dos consumidores, tais como[9]:
1. Padrões obscuros (dark patterns) que podem influenciar negativamente as decisões dos consumidores como, por exemplo, exercendo pressão desnecessária através de falsas alegações de urgência.
2. Design de serviços digitais que incentiva os consumidores a continuar usando o serviço ou a gastar mais dinheiro, como recursos semelhantes aos de jogos de azar em videogames.
3. Direcionamento personalizado que aproveita as vulnerabilidades dos consumidores, como a exibição de publicidade direcionada que explora problemas pessoais, desafios financeiros ou estados mentais negativos.
4. Dificuldades na disposição de assinaturas digitais, nomeadamente quando as empresas dificultam excessivamente o cancelamento da assinatura.
5. Práticas comerciais problemáticas de influenciadores das redes sociais.
É certo que algumas destas práticas podem ir contra a legislação da UE em vigor em matéria de defesa do consumidor e outra legislação da UE, por exemplo, o citado DAS ou a Diretiva Serviços de Comunicação Social Audiovisual.
Porém, um estudo realizado pela Comissão Europeia, apresentado em 4 de outubro de 2024, que abrangeu (i) a Diretiva relativa às práticas comerciais desleais; (ii) a Diretiva Direitos do Consumidor, e (iii) a Diretiva relativa às cláusulas contratuais abusivas permitiu concluir que toda esta legislação, sendo muito relevante e necessária para garantir um elevado nível de proteção dos consumidores e o funcionamento eficaz do Mercado Único Digital, não tinha em consideração as específicas características da economia digital.
De acordo com o mesmo estudo, a evolução tecnológica e o aumento do acompanhamento do comportamento online permitem às empresas persuadir os consumidores online de forma mais eficaz o que implica que se devam assegurar regras mais adaptadas às práticas e desafios nocivos específicos que os consumidores enfrentam num ambiente digital.
Como tal, a Comissão Europeia anunciou estar a preparar nova legislação – o Digital Fairness Act – que permitirá proteger o consumidor, no contexto da economia digital, de práticas lesivas dos seus direitos.
Sendo de esperar que tal legislação venha a ser aprovada em 2025, é igualmente de crer que venha ser replicada em países terceiros, de forma semelhante à que ocorreu, no passado e a título exemplificativo, com o RGPD ou o DMA.
[1] Sobre os novos modelos de economia digital e o enquadramento normativo europeu v. NUNO CUNHA RODRIGUES, A globalização do poder regulatório da União Europeia, Almedina, 2024, pp. 243-280.
[2] A legislação europeia aplicável ao setor digital envolve um total de cinquenta e sete regulamentos e trinta e dias diretivas. A informação pode ser consultada em https://www.bruegel.org/sites/default/files/2023-11/Bruegel_factsheet.pdf (último acesso em dezembro de 2024).
[3] V. Regulamento n.º 679/2016 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 27 de abril de 2016.
[4] V. Regulamento n.º 2018/1807 do Parlamento Europeu e do Conselho de 14 de novembro de 2018 relativo a um regime para o livre fluxo de dados não pessoais na UE.
[5] V. Regulamento n.º 2019/881 do Parlamento Europeu e do Conselho de 17 de abril de 2019 relativo à ENISA (Agência da UE para a Cibersegurança) e à certificação da cibersegurança das tecnologias da informação e comunicação.
[6] V. Diretiva 2019/1024/UE do Parlamento Europeu e do Conselho de 20 de junho de 2019 relativa aos dados abertos e à reutilização de informações do setor público.
[7] V. NUNO CUNHA RODRIGUES, A globalização do poder regulatório da União Europeia, Almedina, 2024, p. 273.
[8] V. LINA M. KHAN (2017), Amazon’s Antitrust Paradox. Yale Law Journal, v. 126, n. 3, pp. 790-801.
[9] V. os exemplos disponíveis em https://www.digital-fairness-act.com/ (acesso em dezembro de 2024).
*Nuno Cunha Rodrigues
Professor Associado da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa
Cátedra Jean Monnet