Soberania Estatal e a Exigência Precaucionária: A Decisão da Noruega sob a Lente da Governança Ambiental Europeia e a Crise da Governança Oceânica

Maria Luisa Machado Porath*

INTRODUÇÃO: O PADRÃO EUROPEU VERSUS A EXPLORAÇÃO NACIONAL

O cenário do Direito Ambiental Internacional e Europeu é marcado pela tensão entre o exercício da soberania estatal sobre os recursos naturais e o imperativo de proteção dos ecossistemas. A decisão do Storting (Parlamento da Noruega), aprovada em 9 de janeiro de 2024, de abrir zonas de sua plataforma continental para a prospeção de Mineração em Águas Profundas, constitui um caso paradigmático para a governança oceânica. A medida abrange uma área de 281.200 quilômetros quadrados no Ártico e confronta diretamente o Princípio da Precaução, princípio basilar da política ambiental da União Europeia, cujo objetivo legal é atingir um “nível de proteção elevado” (UNIÃO EUROPEIA, 2002, artigo 174o).

O rigor europeu é amplificado pela Estratégia de Biodiversidade da União Europeia para 2030, que exige o compromisso com o princípio dos ganhos líquidos (net gains). A discrepância sobre o risco levou o Parlamento Europeu a adotar uma Resolução formal em fevereiro de 2024, na qual reitera o apelo por uma moratória internacional, citando as lacunas significativas no conhecimento científico.

Assim, questiona-se se a decisão da Noruega de avançar com a Mineração em Águas Profundas é compatível com a interpretação e aplicação do Princípio da Precaução no contexto da governança ambiental europeia. Sustenta-se a hipótese de que a decisão norueguesa não é compatível com o padrão precaucional da União Europeia, por reverter o ônus probatório e tolerar o risco inicial em um ecossistema vulnerável.

O PRINCÍPIO DA PRECAUÇÃO: O ALTO NÍVEL DE PROTEÇÃO DA UNIÃO EUROPEIA

O Princípio da Precaução é o padrão de medida da legalidade da ação norueguesa, distinguindo-se da prevenção por lidar com a incerteza científica (BRASIL, [s.d]). Esse princípio exige que o ônus da prova caiba ao proponente da atividade. Internacionalmente, o Princípio 15 da Declaração do Rio sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento (1992) estabeleceu que a falta de certeza científica total não deve ser utilizada para adiar medidas destinadas a evitar a degradação ambiental séria ou irreversível (BRASIL, [s.d]).

A política ambiental da União Europeia visa atingir um nível de proteção elevado, compromisso central no Pacto Ecológico Europeu (COMISSÃO EUROPEIA, 2019). A Estratégia de Biodiversidade da União Europeia para 2030 exige que a humanidade se comprometa com o princípio dos ganhos líquidos (net gains), de modo a restaurar ecossistemas e devolver à natureza mais do que dela retira (COMISSÃO EUROPEIA, 2020).

O rigor do Princípio da Precaução na União Europeia se traduz em um posicionamento de que a exploração de minerais marinhos profundos “não deve prosseguir” (COMISSÃO EUROPEIA, 2020). Essa moratória só poderá ser suspensa mediante o cumprimento de três condições cumulativas: (i) os impactos sobre a biodiversidade devem ter sido suficientemente investigados; (ii) os riscos ambientais devem ser compreendidos; e (iii) as tecnologias e práticas operacionais devem demonstrar que não causam danos graves ao ambiente (COMISSÃO EUROPEIA, 2020).

A CONFRONTAÇÃO DIRETA: O CASO NORUEGUÊS SOB LENTE EUROPEIA

A decisão da Noruega de abrir uma vasta área no Ártico para a prospeção confronta diretamente o padrão de proteção da União Europeia através da insuficiência de sua base científica e da divergência legal na aplicação do Princípio da Precaução. A Agência Norueguesa do Ambiente declarou formalmente em 27 de janeiro de 2023 que a avaliação de impacto ambiental apresentava “lacunas de conhecimento significativas” sobre a natureza, a tecnologia e os potenciais efeitos ambientais, e que, por conseguinte, não constituía uma base suficiente para a extração de minerais (PARLAMENTO EUROPEU, 2024).

O Parlamento Europeu, em sua Resolução de fevereiro de 2024, observou que o estado atual dos conhecimentos científicos não permite uma avaliação rigorosa do impacto e que a exploração prematura pode causar danos permanentes e irreversíveis aos ecossistemas. A vulnerabilidade do Ártico é crucial, sendo um bioma que exige um olhar mais atento devido à sua “importância ambiental fundamental para a biodiversidade e a regulação climática” (PARLAMENTO EUROPEU, 2024, item 16).

A Noruega defende uma “abordagem por etapas”, condicionando a extração futura à aquisição de conhecimentos durante a prospecção (PARLAMENTO EUROPEU, 2024). O Tribunal de Oslo (Tingrett), ao analisar a validade da resolução de abertura, reconheceu que o conhecimento atual é “insuficiente para aprovar eventual produção” (NORUEGA, Oslo Tingrett, 2025, p. 55).

Contudo, o Tribunal de Oslo concluiu que a lei norueguesa não exige que o estudo de impacto seja “completo e fiável” (NORUEGA, Oslo Tingrett, 2025, p. 59), permitindo que a avaliação se baseie em “suposições”. Esta flexibilidade contradiz o Princípio da Precaução europeu: a União Europeia exige a abstenção (moratória) até que a ausência de dano seja comprovada, enquanto a Noruega tolera o risco inicial, revertendo o ônus probatório. O risco é de longo prazo, porque a recuperação de ecossistemas marinhos profundos danificados pela Mineração em Águas Profundas pode levar até centenas de anos (NORUEGA, Oslo Tingrett, 2025).

IMPLICAÇÕES SISTÊMICAS DA DECISÃO NORUEGUESA PARA A GOVERNANÇA EUROPEIA E OCEÂNICA

A falha da Noruega em cumprir o Princípio da Precaução europeu tem implicações profundas para a coerência da ação externa da União Europeia (UNIÃO EUROPEIA, 2002). O conflito é manifesto: em outubro de 2023, a União Europeia enviou uma nota verbal n.o 21/13 à Noruega, manifestando preocupação com os importantes efeitos negativos da anunciada Mineração em Águas Profundas nas unidades populacionais de peixes e no acesso dos navios dos Estados-Membros da União Europeia aos pesqueiros da zona (PARLAMENTO EUROPEU, 2024). O Parlamento Europeu reiterou o apelo a uma moratória internacional e compeliu a Noruega a continuar a dialogar num espírito de parceria recíproca, destacando o compromisso de ambos os parceiros com o Acordo BBNJ (junho de 2023 (PARLAMENTO EUROPEU, 2024. O rigor europeu reflete-se na ação de Portugal, que aprovou a primeira lei europeia a estipular uma moratória até 2050 (ROCHA, 2025).

A decisão norueguesa expõe vulnerabilidades sistêmicas da Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar (UNCLOS):

1. Patrimônio Comum da Humanidade versus Pressão Econômica: a demanda por minerais críticos (cobalto, níquel), essenciais para a transição energética europeia (COMISSÃO EUROPEIA, 2019), cria uma pressão econômica brutal que colide com o ideal do Patrimônio Comum da Humanidade (PCH, Parte XI da Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar). A análise sugere que, diante desses incentivos, o princípio do PCH corre o risco de se tornar uma “mera formalidade”.

2. Proteção do Patrimônio Cultural Subaquático: embora a Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar exija a proteção de objetos de natureza arqueológica ou histórica (artigos 149 e 303 da Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar), o quadro legal pode não ser suficiente para lidar com a escala do impacto da Mineração em Águas Profundas e proteger o patrimônio cultural imaterial.

3. Fragmentação da Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar: a proibição de reservas (artigo 309) é contornada pelas declarações interpretativas (artigo 310 da Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar). A natureza, por vezes contraditória, dessas declarações cria um “mosaico de interpretações” que mina a previsibilidade e a cooperação internacional (Preâmbulo, artigo 197 da Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A análise confirma a hipótese de incompatibilidade. A decisão da Noruega viola o Princípio da Precaução europeu, que exige a moratória até que a ausência de dano grave seja comprovada. A Noruega, ao validar uma avaliação de impacto baseada em “suposições” e insuficiência de conhecimento, falha em cumprir o padrão de proteção da União Europeia. O caso da Mineração em Águas Profundas no Ártico reforça a urgência de aprimorar a governança ambiental da União Europeia. A Comissão reconhece que a aplicação e a fiscalização da legislação ambiental da União Europeia estão atrasadas, o que acarreta custos econômicos e ambientais consideráveis.

As tendências futuras impõem que a União Europeia intensifique a sua ação, buscando um processo de aplicação, monitorização e revisão “muito mais forte” e juridicamente vinculativo. O esforço de assegurar que os altos padrões de precaução se tornem a norma efetiva é crucial para proteger os ecossistemas marinhos, que são de interesse comum europeu.

REFERÊNCIAS
BRASIL. MINISTÉRIO DO MEIO AMBIENTE. Princípio da Precaução. [S. l.: s. n.]. Disponível em: https://antigo.mma.gov.br/component/k2/item/7512-principiodaprecaucao. Acesso em: 27 set. 2025.
COMISSÃO EUROPEIA. Comunicação da Comissão, de 11 de dezembro de 2019, intitulada «Pacto Ecológico Europeu». Bruxelas, 2019. Disponível em: https://commission.europa.eu/strategy-and-policy/priorities-2019-2024/european-green-deal_en. Acesso em: 28 set. 2025.
COMISSÃO EUROPEIA. Comunicação da Comissão, de 20 de maio de 2020, Estratégia de Biodiversidade da UE para 2030 – Trazer a natureza de volta às nossas vidas (COM(2020) 380 final). Bruxelas, 2020. Disponível em: https://eur-lex.europa.eu/legal content/PT/TXT/HTML/?uri=CELEX:52020DC0380. Acesso em: 29 set. 2025.
NORUEGA. OSLO TINGRETT. Sentença judicial do Tribunal de Oslo (Tingrett). Processo n.º 24-081980TVI-TOSL/04. Oslo, 13 fev. 2025. Disponível em: https://media.wwf.no/assets/attachments/Dom-Oslo-tingrett.pdf. Acesso em: 20 set. 2025.
ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS (ONU). Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar (UNCLOS). Montego Bay, 10 dez. 1982. Disponível em: https://treaties.un.org/pages/ViewDetailsIII.aspx?src=TREATY&mtdsg_no=XXI 6&chapter=21&Temp=mtdsg3&clang=_en. Acesso em: 20 set. 2025.
ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS (ONU). Declaração do Rio sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento (Rio/92). Rio de Janeiro, 1992. Disponível em: https://www5.pucsp.br/ecopolitica/projetos_fluxos/doc_principais_ecopolitica/Declaracao_rio_1 992.pdf. Acesso em: 28 set. 2025.
PARLAMENTO EUROPEU. Proposta de Resolução B9-0095/2024 sobre a recente decisão da Noruega de fazer avançar a exploração mineira dos fundos marinhos no Ártico (2024/2520(RSP)). Bruxelas, 31 jan. 2024. [Integra a Declaração da Agência Norueguesa do Ambiente (27.01.2023) e a Nota Verbal n.º 21/13 da Comissão Europeia]. Disponível em: https://www.europarl.europa.eu/doceo/document/B-9-2024-0095_PT.html. Acesso em: 28 set. 2025.
ROCHA, Sara de Melo. Portugal pioneiro na Europa em travar mineração no fundo do mar. ONU News, [S. l.], 2 abr. 2025. Disponível em: https://news.un.org/pt/story/2025/04/1846881#:~:text=Portugal%20pioneiro%20na%20Europa%
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*Maria Luisa Machado Porath
Advogada e Mestranda em Direito na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).