Naiara Posenato*
Diálogo entre cortes de justiça levam ao reconhecimento do direito transnacional para identificação do foro competente.
Em 2 de maio de 2023 a Corte di Cassazione italiana, em formação solene – Sezioni unite –, pronunciou-se no âmbito de uma controvérsia instaurada com base em embargos contra a execução de sentença de dívida decorrente do não pagamento de mercadorias (Ordinanza n. 11346/2023). A sentença embargada adotada pelo Tribunal de Bréscia, Itália, condenava uma empresa francesa adquirente ao pagamento de 141.495,79 euros pelo fornecimento de garrafas de água mineral destinadas a posterior revenda no mercado asiático, com base em contrato internacional de venda concluído com uma fornecedora italiana. Segundo a empresa francesa, a injunção ao pagamento adotada pelo tribunal italiano violaria as regras de competência jurisdicional do Regulamento UE n. 1215/2012 relativo à competência judiciária, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria civil e comercial (Regulamento Bruxelles 1 bis), aplicável à questão, em conformidade ao qual – afirma – a competência seria do Tribunal de Versailles, França.
É sabido que, em matéria de competência judiciária, para o reconhecimento e execução de decisões em matéria civil e comercial em âmbito europeu, vigem as normas uniformes postas pelo Regulamento europeu n. 1215/2012. Segundo a regra geral prevista neste Regulamento (art. 4), as pessoas domiciliadas em um Estado-membro devem ser demandadas perante os tribunais deste Estado, independentemente da própria nacionalidade. Ao mesmo tempo, normas especiais (art. 7) determinam que é possível demandar diante de tribunais diversos daqueles do Estado de domicílio em casos específicos: em matéria contratual e salvo convenção das partes em contrário, diante do juiz do local onde foi ou deve ser cumprida a obrigação em questão (art. 7, “b”). Especificamente em caso de venda de bens, segundo a mesma norma diante do “lugar num Estado-Membro onde, nos termos do contrato, os bens foram ou devam ser entregues” (art. 7, “b”, primeiro item). Quando não for possível estabelecer com base no contrato este local, o mesmo deve ser entendido como o local de entrega material da mercadoria, ou seja, o lugar onde o comprador adquire disponibilidade material da mercadoria.
A tese defendida pela empresa francesa era contestada pela sociedade credora-vendedora italiana, que afirmava que como o contrato de venda entre as partes continha uma cláusula Incoterm “Ex works”, as mercadorias deveriam ser entregues junto ao estabelecimento do vendedor, o que levaria, com base no art. 7, “b” do Regulamento Bruxelas 1 bis à afirmação da jurisdição italiana.
Como é sabido, os Incoterms Ó (International Commercial Terms), são uma forma de codificação do direito transnacional muito frequente na venda internacional (utilizada também em contratos internos), realizada pela Câmera Internacional de Comércio desde 1927 (a edição atual é de 2020). Através de acrônimos específicos, os IncotermsÓ permitem as partes regulamentar de forma clara e sobretudo uniforme em todo o mundo fases específicas do contrato de venda, relativos à entrega do bem e à consequente passagem do risco por perda ou danos, o seu transporte, eventual passagem aduaneira e seguro. A definição da cláusula Ex Works segundo o Incoterms ICC 2010 é a seguinte: “Ex Works means that the seller delivers When it places the goods at the disposal of the buyer at the sellers premises or another named place (i.e., works, factory, warehouse, etc.). The seller does not need to load the goods on any collecting vehicle, nor does it need to clear the goods for export, where such clearance is applicable”.
No processo que deu origem à decisão em comento, o Juízo de primeiro grau de Brescia havia revogado a ordem de execução julgando procedente a exceção de incompetência apresentada pela parte compradora, e o Tribunal de Apelação de Brescia confirmou esta conclusão argumentando que, com base no art. 4 do Regulamento UE 1215/2012 a jurisdição era do juiz francês, território em que a empresa devedora tinha sede, até porque a cláusula IncotermsÓ “Ex Works” não implicava uma mudança automática do local físico de entrega da mercadoria se não acompanhada de elementos que confirmam claramente que a escolha deste local também visaria o assentamento da jurisdição.
O acórdão do Tribunal de Apelação foi contestado pela vendedora diante da Corte de Cassação italiana, sobretudo no que concerne o ponto da fundamentação segundo o qual a cláusula Ex Works presente na documentação produzida não permitiria a reconstrução da vontade das partes no que concerne o local da tradição da mercadoria, cuja consideração levaria à derrogação da jurisdição francesa. A Corte superior italiana esclareceu que a análise da questão se o referimento a uma cláusula geralmente reconhecida no comércio internacional como os IncotermsÓ possa ser considerada uma cláusula contratual relevante aos fins do art. 7, “b”, primeiro item, do Regulamento UE n. 1215/2012 deveria ser realizada com base na jurisprudência do Tribunal de Justiça da União Europeia, e com especial atenção ao leading case Processo C-87/10, de 9 de junho de 2011, Electrosteel Europe SA c. Edil Centro SpA. Esta decisão foi referida à precedente “versão” do Regulamento UE n. 1215/2012, o Regulamento UE n. 44/2001 (Regulamento Bruxelas I), e à interpretação de norma com análogo conteúdo (art. 5, n. 1, “b”), fornecida em resposta a um pedido de decisão prejudicial apresentado por uma empresa com sede no território italiano. Naquela ocasião, o Tribunal afirmou que tal artigo “(…) deve ser interpretado no sentido que, em caso de venda à distância, o lugar onde as mercadorias foram ou deveriam ter sido entregues nos termos do contrato deve ser determinado com base nas disposições desse contrato. No âmbito da análise sobre se o lugar de entrega é determinado «nos termos do contrato», o órgão jurisdicional nacional em causa deve ter em conta todos os termos e todas as cláusulas pertinentes desse contrato que permitam designar de maneira clara esse lugar, incluindo os termos e cláusulas geralmente reconhecidos e consagrados pelos usos do comércio internacional, como os «Incoterms» («international commercial terms»), (…)”.
A decisão da corte de vértice italiana também toma em consideração uma decisão sucessiva do Tribunal de Luxemburgo, expedida em 14 de julho de 2016 (Processo C-196/15). Trata-se de pronúncia em reenvio prejudicial no âmbito de processo movido por Ambrosi Emmi France SA, sociedade francesa, contra Granarolo SpA, italiana, a propósito de uma ação indenizatória com fundamento na rutura abrupta de relações comerciais estáveis. Com relação à segunda questão colocada pelo órgão judicial francês, relacionada à qualificação do contrato entre as partes como de venda de bens ou prestação de serviços, os juízes europeus reafirmaram, de forma ainda mais clara o princípio, sustentando que “No caso em apreço, ainda que um contrato celebrado oral ou tacitamente seja qualificado de «venda de bens», cabe ao órgão jurisdicional de reenvio verificar se a menção «Ex works», referida no n.o 10 do presente acórdão, figura de forma sistemática nos contratos sucessivos entre as partes. Se assim for, há que concluir que os bens eram entregues na fábrica da Granarolo, em Itália, e não em França, na sede da Ambrosi.”
Com base em tais decisões, a Corte de Cassação italiana afirmou que o juiz nacional deve tomar em consideração as cláusulas IncotermsÓ inseridas nos contratos entre as partes porque as mesmas, em presença de algumas condições, contêm os elementos para individuar o juiz competente em conformidade com o Direito europeu. Tais condições são essencialmente duas: deve existir prova unívoca de um acordo entre as partes ou, em outros termos, não se considera a fins de determinação de jurisdição cláusulas (inclusive IncotermsÓ) contidas em documentos unilateralmente predispostos, como faturas, confirmações de pedido, etc.; não devem estar presente no contrato outros elementos que demonstrem que as partes houvessem escolhido outro local para entrega e que utilizaram a cláusula IncotermsÓ para efeitos diversos, como a organização do transporte da mercadoria ou a passagem de risco. Nesse sentido, a mais alta jurisdição ordinária italiana realizou um parcial overruling da própria posição, manifestada em juízos anteriores (Ordinanza n. 32362 de 13/12/2018, Bariven SA c. L.C.M. Italia SpA, Acórdão n. 17566, de 28/06/2019, Team SA c. Agusta SpA, entre outros) onde afirma-se a ideia de que a adoção de uma cláusula IncotermsÓ não oferece certezas quanto à identificação do local de entrega relevante a fins de jurisdição competente.
Declinada ao caso em questão, a Corte de Cassação entendeu que segundo a cláusula IncotermsÓ contida no contrato entre credor e devedor relevante para o processo, o local de entrega foi na Itália porque em tal país a mercadoria foi colocada à disposição do comprador, com a decorrente afirmação da competência do juiz italiano. Consequentemente, a Corte de Cassação anulou o acórdão do Tribunal de Brescia remitindo ao mesmo para nova decisão, em composição diversa.
*Naiara Posenato
Professora de Direito Comparado na Università degli Studi di Milano, Itália.