Os recentes casos de litigância climática no Tribunal Europeu dos Direitos Humanos

Rui Guerra da Fonseca* and Carolina Patinhas**

No dia 9 de abril de 2024, a comunidade internacional conheceu as tão esperadas decisões do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos (TEDH) no âmbito dos três primeiros casos sobre alterações climáticas perante o sistema de Estrasburgo: o caso Duarte Agostinho (queixa n.º 39371/20)[1], o caso KlimaSeniorinnen (queixa n.º 53600/20)[2] e o caso Carême (queixa n.º 7189/21)[3]. Os três casos visavam demandar os Estados respondentes por inação climática ao abrigo da Convenção Europeia dos Direitos Humanos (CEDH), com base no argumento que os consequentes efeitos adversos das alterações climáticas afetam o exercício dos Direitos Humanos dos indivíduos.

A CEDH não prevê o direito a um ambiente saudável e sustentável, pelo que as demandas climáticas perante o TEDH basearam-se, maioritariamente, na invocação de obrigações positivas derivadas dos artigos 2.º (direito à vida) e 8.º (direito ao respeito pela vida privada e familiar). Neste âmbito, procurava-se saber se os Estados-membros da CEDH têm obrigações de combate às alterações climáticas inerentes à proteção dos direitos assegurados pela Convenção. Ademais, a complexa natureza global do fenómeno das alterações climáticas veio desafiar a jurisdição de Estrasburgo, especialmente perante questões de admissibilidade, destacando-se as questões relacionadas com a jurisdição extraterritorial da CEDH, o estatuto da vítima à luz do artigo 34.º da CEDH, a responsabilidade individual dos Estados, e o estabelecimento do nexo de causalidade entre a omissão e os danos invocados.

No caso Carême, referente a uma queixa apresentada por um antigo autarca e residente de Grande-Synthe em França, uma cidade de elevado risco de exposição a ameaças climáticas, o TEDH considerou que o requerente não preenchia o estatuto de vítima ao abrigo do artigo 34.º, por não se observar a existência de um interesse pessoal e afetação direta dos direitos invocados. Isto deveu-se ao facto de o requerente não residir, atualmente, em Grande-Synthe, pelo que não apresentava qualquer tipo de ligação direta com a cidade, de forma a poder invocar o estatuto de vítima perante os riscos de danos invocados, que se restringiam à sua antiga cidade de residência. Quanto ao argumento de Carême ter recorrido ao TEDH enquanto antigo autarca de Grande-Synthe, o TEDH referiu que se encontra estabelecido na jurisprudência do Tribunal que autoridades descentralizadas que exerçam funções públicas são consideradas organizações governamentais, às quais não é concedida legitimidade ativa para apresentar uma queixa perante o TEDH, ao abrigo do artigo 34.º da CEDH. Neste sentido, o Tribunal considerou a queixa inadmissível por incompatibilidade ratione personae com a CEDH, em especial com o artigo 35.º, n.º 3.

O caso Duarte Agostinho foi também rejeitado pela instância de Estrasburgo por questões de admissibilidade. O caso apresentado pelos seis jovens portugueses visava responsabilizar 33 Estados Partes da CEDH por inação climática, incluindo Portugal, o país de residência dos requerentes. Ao abrigo do artigo 1.º da CEDH, o TEDH admitiu a jurisdição do Estado Português, mas rejeitou a jurisdição extraterritorial dos restantes 32 Estados Partes demandados (rigorosamente, apenas 31, após desistência da queixa contra a Ucrânia em razão da situação de guerra em que se encontra), por considerar que tal alargamento do escopo do artigo 1.º da CEDH seria incompatível com os princípios de jurisdição consolidados na jurisprudência do TEDH e implicaria uma expansão ilimitada do escopo da jurisdição da CEDH. A jurisdição da CEDH ao abrigo do artigo 1.º tem uma índole primordialmente territorial, sendo os casos de extraterritorialidade exceções construídas pela jurisprudência do TEDH. Ao abrigo dessa jurisprudência, para haver jurisdição extraterritorial, é necessário existir um controlo efetivo sob o território ou vítimas em causa, o que não se verificava no caso Duarte Agostinho. Ademais, o TEDH veio firmemente rejeitar o modelo de jursidiction as impact invocado pelos requerentes com referência às posições adotadas pelo Tribunal Interamericano dos Direitos Humanos (Parecer Consultivo OC-23/17) e pelo Comité dos Direitos da Criança (caso Sacchi).

Considerando existir jurisdição somente do Estado Português, o TEDH veio afirmar que os requerentes deveriam ter esgotado as vias de recurso internas disponíveis em Portugal, antes de recorrer a Estrasburgo[4]. Uma vez que tal não sucedeu, o TEDH veio concluir pela inadmissibilidade da queixa ao abrigo do artigo 35.º, n.º 1.

A grande vitória do dia 9 de abril ocorreu no caso KlimaSeniorinnen, que veio introduzir um marco histórico na litigância climática e na jurisprudência do sistema de Estrasburgo. Primeiramente, o TEDH concluiu que as especificidades do caso não constituíam uma ameaça suficientemente séria para desencadear a aplicação do artigo 2.º e optou por restringir o parâmetro do caso ao artigo 8.º da CEDH[5]. Neste sentido, considerando o nexo de causalidade entre a inação climática do Estado e o risco de danos perante os direitos dos indivíduos, o Tribunal concluiu que o artigo 8.º enquadra um direito de proteção contra os efeitos adversos das alterações climáticas na vida, saúde, bem-estar e qualidade de vida dos indivíduos. Apesar de reconhecer as alterações climáticas enquanto um fenómeno global, o TEDH observou que cada Estado tem a sua própria quota de responsabilidade individual para adotar e aplicar legislação e medidas capazes de mitigar os existentes e potencialmente irreversíveis efeitos futuros das alterações climáticas. No âmbito do caso, o TEDH considerou terem existido falhas críticas no processo de adoção de medidas e legislação doméstica nesse sentido por parte do Estado respondente (Suíça), tendo concluído pela existência de uma violação do artigo 8.º da CEDH.

Na aferição do estatuto de vítima, além da necessidade de observância de um impacto direto e pessoal da omissão impugnada nos direitos invocados, considerando a natureza global das alterações climáticas e a exclusão da actio popularis da jurisdição de Estrasburgo, o TEDH veio estabelecer dois critérios restritivos adicionais em casos de alterações climáticas: o nível de intensidade da exposição dos requerentes aos efeitos adversos das alterações climáticas, e a necessidade urgente de assegurar a proteção individual do requerente. À luz destes critérios e considerando as circunstâncias do caso, o Tribunal acabou por concluir que as requerentes individuais não observavam os requisitos necessários para poderem ser consideradas vítimas. Porém, o TEDH veio reconhecer que as caraterísticas especiais das alterações climáticas justificavam a legitimidade do recurso a ações legais por meio de associações, admitindo de modo inovador o locus standi da associação perante o artigo 34.º, ao abrigo de determinados requisitos[6].

Concluindo, as decisões de 9 de abril de 2024 constituem um marco histórico, enquanto primeiros casos de alterações climáticas decididos pelo TEDH. O triunfante caso KlimaSenioriennen veio estabelecer que os Estados Partes da CEDH têm obrigações positivas de combate às alterações climáticas ao abrigo do artigo 8.º, e veio introduzir uma importante inovação na jurisprudência de Estrasburgo através da admissão do locus standi de associações em representação dos seus membros, no âmbito de queixas climáticas. Esta flexibilidade e capacidade de adaptação observada no caso KlimaSeniorinnen contrastou com a posição conservadora adotada pelo TEDH no caso Duarte Agostinho, arriscando-se a ficar aquém das tendências internacionais, especialmente no que concerne à abordagem da jurisdição extraterritorial[7]. Além disso, inúmeras questões no âmbito do mérito do caso Duarte Agostinho ficaram por responder, nomeadamente a aplicabilidade dos artigos 3.º (proibição da tortura) e 14.º (proibição de discriminação) da CEDH, e do artigo 1.º do Protocolo n.º 1 (direito à proteção da propriedade).

[1] https://hudoc.echr.coe.int/eng/#{%22itemid%22:[%22001-233155%22]}
[2] https://hudoc.echr.coe.int/eng/#{%22itemid%22:[%22001-233206%22]}
[3] https://hudoc.echr.coe.int/eng/#{%22itemid%22:[%22001-233174%22]}
[4] O TEDH observou que Portugal contém a proteção constitucional do direito a um ambiente saudável e sustentável (artigo 66.º da CRP) exequível perante os tribunais domésticos, e que a legislação e sistema judicial português asseguram o acesso direto dos indivíduos nas instâncias domésticas para demandar obrigações climáticas do Estado (nomeadamente ao abrigo do artigo 6.º da Lei de Bases do Clima), tal como mecanismos para ultrapassar questões de representação legal, pelo que os jovens portugueses reuniam condições para observar o pressuposto do esgotamento das vias de recurso internas em Portugal.
[5] O TEDH considerou que para o artigo 2.º ser aplicável tem de ser determinada a existência um risco para a vida real e iminente e um risco grave de inevitabilidade e irreversibilidade dos efeitos adversos das alterações climáticas.
[6] A associação deve: ter estabelecimento ou locus standi perante a jurisdição respondente; demonstrar que prossegue um determinado propósito de acordo com os seus objetivos estatutários, na defesa de Direitos Humanos dos seus membros ou indivíduos afetados no âmbito da jurisdição em causa, independentemente de ser limitada ou inclusiva de ação coletiva para a proteção desses direitos contra ameaças resultantes das alterações climáticas; e demonstrar que é qualificada para representar e agir em nome dos seus membros ou outros indivíduos afetados sob a jurisdição respondente, que sejam alvo de ameaças específicas ou efeitos adversos das alterações climáticas nas suas vidas, saúde e bem-estar.
[7] Ainda antes destas decisões do TEDH, cfr. Rui Guerra da Fonseca, “Constitutional Justice and Cliamte Change: The decision of the German Constitutional Court of 24 March 2021 and the challenges put before the ECHR”, in Vasco Pereira da Silva/ Axel Kämmerer/ Diana Urania Galetta, New Public Tasks in Times of Tension, no prelo; Ireneu Cabral Barreto / Rui Guerra da Fonseca, “A ‘doutrina Bosphorus’ e a tendência para a ampliação da jurisdição do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos: algumas notas”, in Estudos em Homenagem ao Conselheiro Sousa Ribeiro, Tribunal Constitucional, II, Almedina, 2019, pp. 573 ss.


*Rui Guerra da Fonseca

Professor Associado da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa; Juiz do Tribunal Constitucional de Portugal

**Carolina Patinhas
Mestranda em Direito Internacional e Relações Internacionais na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa