Naiara Posenato*
O Estado de Direito é um dos valores comuns para todos os Estados-Membros da União Europeia. Sob o Estado de Direito, todos os poderes públicos atuam dentro dos limites estabelecidos pela lei, em conformidade com os valores da democracia e dos direitos fundamentais, e sob o controle de tribunais independentes e imparciais. Este valor superior compreende princípios como:
– Legalidade: processo transparente, responsável, democrático e pluralista para a promulgação de leis;
– Segurança jurídica;
– Proibição do exercício arbitrário do poder executivo;
– Proteção judicial efetiva por tribunais independentes e imparciais, revisão judicial eficaz incluindo o respeito pelos direitos fundamentais;
– Separação de poderes;
– Igualdade perante a lei.
O Estado de Direito está consagrado no Art. 2 e em diversas outras disposições do Tratado da União Europeia (TUE). Da mesma forma, no Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia (TFUE) foram previstos mecanismos quais os procedimentos de infração (Art.s 258 e 259 do TFUE) e decisões prejudiciais (Art. 267 do TFUE), para assegurar a interpretação uniforme do direito da UE, bem como medidas corretivas em caso de violações.
A Carta dos Direitos Fundamentais da EU também prevê explicitamente em seu art. 19 o “direito a um recurso efetivo e a um julgamento justo”, garantindo a existência de um remédio judicial eficaz quando os direitos e liberdades garantidos pelo direito da UE são violados.
1. Mecanismos da União Europeia para a garantia do Estado de Direito
A Comissão Europeia considera a promoção e manutenção do Estado de Direito um “imperativo central” de seu trabalho como guardiã dos tratados. Quando os sistemas jurídicos nacionais deixam de funcionar eficazmente, a UE deve agir para proteger o Estado de Direito utilizando diversos procedimentos, medidas e instrumentos com diferentes propósitos e consequências para a não conformidade. Dentre tais mecanismos, salienta-se:
1.1 Relatório Anual sobre o Estado de Direito
Desde 2020, a Comissão Europeia publica anualmente o Relatório sobre o Estado de Direito, que avalia de forma estruturada e rigorosa os desenvolvimentos nacionais significativos, tanto positivos quanto negativos, em quatro áreas temáticas ou “pilares”: 1. Sistemas de justiça, que aborda a independência, a qualidade e a eficiência do sistema de justiça; 2. Quadro anticorrupção, que avalia a capacidade do quadro institucional para combater a corrupção, incluindo medidas de prevenção e medidas repressivas; 3. Pluralismo e a liberdade dos meios de comunicação, que abrange a consideração das autoridades e órgãos de mídia, a transparência na propriedade dos meios de comunicação, salvaguardas contra interferências governamentais ou políticas e o quadro de proteção para jornalistas; e, finalmente, 4. Questões Institucionais Relativas ao Equilíbrio de Poderes, que compreende o processo de preparação e promulgação de leis, autoridades independentes, acessibilidade e revisão judicial de decisões administrativas, o quadro facilitador para a sociedade civil e iniciativas para promover uma cultura de Estado de Direito.
Nem o Relatório nem suas recomendações são juridicamente vinculativos, mas desempenham uma função de promoção e preventiva na conservação do Estado de Direito entre os Estados-Membros. A partir de 2022, o Relatório inclui recomendações específicas aos Estados-Membros para apoiar reformas e identificar onde são necessárias melhorias ou ações de acompanhamento.
1.2 Regulamento de Condicionalidade
O Regulamento de Condicionalidade estabelece um regime geral para proteger o orçamento e os interesses financeiros da UE em caso de violações dos princípios do Estado de Direito. Ele prevê medidas protetivas específicas, como suspensão de pagamentos ou proibição de novos compromissos legais, que só podem ser aplicadas quando as violações afetarem ou colocarem seriamente em risco a gestão financeira do orçamento da UE ou a proteção dos interesses financeiros da UE. Este procedimento foi aplicado pela primeira vez em 2022, em relação à Hungria.
1.3 Procedimentos do Artigo 7 do TUE
O Artigo 7 do TUE estabelece procedimentos para tratar do risco de uma violação grave ou da existência de uma violação grave e persistente dos valores referidos no Artigo 2 do TUE. Seu escopo abrange, além do Estado de Direito, o respeito pela dignidade humana, liberdade, democracia, igualdade e direitos humanos. O artigo possui três parágrafos, cada um introduzindo um procedimento distinto:
– Artigo 7(1) – Determina se há risco claro de uma violação grave dos valores por um Estado-Membro. É acionado mediante proposta formulada por 1/3 dos Estados-Membros, pelo Parlamento ou pela Comissão, e a relativa decisão é adotada por 4/5 do Conselho, com o consentimento do Parlamento.
– Artigo 7(2) – Determina a existência de uma violação grave e persistente dos valores por um Estado-Membro. É acionado mediante proposta formulada por 1/3 dos Estados-Membros, ou pela Comissão, e a relativa decisão é adotada pelo Conselho Europeu de forma unânime (sem o Estado-Membro em questão), com o consentimento do Parlamento.
– Artigo 7(3) – Decide sobre a suspensão dos direitos derivados dos Tratados ao Estado-Membro em questão, incluindo os direitos de voto no Conselho: a decisão é adotada pela maioria qualificada do Conselho.
2. O Relatório Geral sobre o Estado de Direito de 2024
No dia 24 de julho de 2024 a Comissão europeia publicou o seu Quinto Relatório Geral sobre o Estado de Direito. O Relatório de 2024 inclui, como em todos os anos, uma Comunicação, que analisa a situação da UE no seu conjunto, e 27 capítulos por país que analisam os desenvolvimentos significativos em cada Estado-Membro. O relatório inclui igualmente uma avaliação relativa às recomendações do ano passado e, nessa base, emite, uma vez mais, Recomendações específicas destinadas a todos os Estados-Membros. Pela primeira vez, os candidatos à adesão à UE Albânia, Montenegro, Macedônia do Norte e Sérvia estão incluídos no relatório.
O Relatório geral sobre o Estado de Direito constatou que 68% das mudanças recomendadas pela Comissão no documento do ano passado foram totalmente ou parcialmente atendidas em todos os países analisados. No entanto, em alguns países – notadamente na Hungria – problemas permanecem ou pioraram. A liberdade de imprensa ainda está em risco em vários países da UE, afirmou a Comissão Europeia.
2.1 Principais Conclusões e Recomendações
– Reformas no Domínio da Justiça
As reformas no domínio da justiça continuaram a ser uma prioridade, com muitos Estados-Membros aplicando as recomendações de 2023 e executando reformas no contexto do Mecanismo de Recuperação e Resiliência (MRR).
O Relatório sobre o Estado de Direito analisou o nível de independência judicial percebida. Alguns países – Áustria, Dinamarca, Finlândia, Irlanda, Luxemburgo e Suécia – classificaram-se muito em alto, com pontuações acima de 75%. Polônia, Bulgária e Croácia obtiveram baixas pontuações, abaixo de 30%. O risco de que declarações públicas feitas por governos e políticos possam afetar a confiança pública na independência judicial tem levantado preocupações em vários países da União Europeia, incluindo a Eslováquia, Itália e Espanha.
Vários países iniciaram ou continuaram reformas importantes para reforçar a independência judicial, melhorar procedimentos de nomeação de juízes e reforçar a autonomia dos serviços do Ministério Público. No entanto, algumas preocupações sistêmicas sobre a independência judicial persistem.
O Relatório deste ano recomenda aos Estados-Membros que enfrentem desafios como a necessidade de garantias nos procedimentos de nomeação de juízes, tanto em tribunais de primeira instância como para cargos de alto nível. Ainda considerou temas como os esforços realizados para melhorar a Qualidade e Eficiência da Justiça, relevando que há a necessidade de disponibilizar recursos adequados ao poder judicial, em especial no que diz respeito aos salários ou à infraestrutura. Salientou a necessidade de garantir a autonomia do Ministério Público e o papel dos Advogados no Sistema Judiciário, através de uma melhoria dos processos de assistência judiciária.
– Quadro de Combate à Corrupção
A corrupção continua a ser uma grande preocupação para os cidadãos e empresas da UE. O Eurobarômetro de 2024 mostra que 65% dos cidadãos consideram insuficientes os processos contra a corrupção de alto nível, e apenas 30% avaliam como eficazes os esforços governamentais para combatê-la. Medidas preventivas adicionais são necessárias, como a regulamentação das atividades de lobby, conflitos de interesses e declarações de patrimônio, bem como a eficácia das investigações e ações penais em casos de corrupção.
Desde o ano passado, os Estados-Membros aprimoraram o seu panorama institucional para melhor combater a corrupção, nomeadamente através do aumento dos recursos no que diz respeito à capacidade dos serviços responsáveis pela aplicação da lei, das autoridades competentes para o exercício da ação penal e do poder judicial. Ao mesmo tempo, são necessárias novas medidas para reforçar os quadros preventivos, como os que regem as atividades de lobby e os conflitos de interesses, e as regras em matéria de declaração de renda, bem como para assegurar a eficácia da investigação e da ação penal em casos de corrupção e a proteção dos whistleblowers. Estas necessidades refletem-se nas recomendações deste ano.
Nos países candidatos, as disposições jurídicas e institucionais foram reforçadas, embora seja necessário continuar a reforçar a investigação e o exercício da ação penal em casos de corrupção.
– Liberdade e Pluralismo dos Meios de Comunicação
Desde o último relatório, vários Estados-Membros adotaram medidas para melhorar a segurança dos jornalistas e o ambiente de trabalho.
Além disso, as funções e competências de várias entidades reguladoras nacionais dos meios de comunicação social foram alargadas e prorrogadas, também devido à entrada em vigor do Regulamento dos Serviços Digitais da UE, bem como à recente criação ou alargamento dos registros de propriedade em linha.
No entanto, persistem algumas preocupações em vários Estados-Membros no que diz respeito à administração independente ou à estabilidade financeira dos organismos de radiodifusão de serviço público, à transparência da propriedade dos meios de comunicação social, ao direito de acesso a documentos públicos e à distribuição transparente e equitativa da publicidade estatal.
Por exemplo na Itália, a independência do radiodifusor público RAI “representa uma fonte de preocupação de longa data” sobre questões de governança e financiamento. Uma reforma abrangente é necessária “para garantir que a RAI esteja melhor protegida contra os riscos de interferência política, declarou a Comissão.
A Comissão emitiu, uma vez mais, várias recomendações sobre todos estes domínios, nomeadamente sobre a segurança dos jornalistas. Os jornalistas continuam a enfrentar ameaças físicas e jurídicas, com campanhas de difamação online e censura também comprometendo sua segurança. Diversas medidas recomendadas na Recomendação da Comissão de 2021 sobre a segurança dos jornalistas precisam ser aprimoradas em vários Estados-Membros como a investigação e a perseguição eficazes e imparciais de crimes, treinamento específico, enfrentamento de ameaças e ataques online e garantia da segurança de jornalistas mulheres, jornalistas pertencentes a grupos minoritários e aqueles que relatam questões de igualdade.
– Questões Institucionais Relativas ao Equilíbrio de Poderes
Segundo o Relatório Geral sobre o Estado de Direito, “Um sistema bem-funcionante de freios e contrapesos institucionais é fundamental para o Estado de Direito e proporciona um sistema de controle mútuo, pelo qual o poder exercido por uma autoridade estatal é sujeito ao escrutínio de outras, mesmo que a forma como isso é organizado varie de acordo com diferentes tradições jurídicas e constitucionais nacionais”. O documento reconhece que os Estados-Membros da EU têm melhorado a qualidade dos processos legislativos e incluído partes interessadas nesses processos.
No entanto, continuam a existir desafios em vários Estados-Membros, como a utilização excessiva de processos acelerados ou emergenciais ou a melhoria da qualidade em si do processo legislativo, a fim de que seja prevista a consulta das partes interessadas, a acessibilidade e a transparência. A sociedade civil e os defensores dos direitos humanos enfrentam cada vez mais desafios, restrições jurídicas e ataques, incluindo restrições sistémicas às suas atividades em determinados Estados-Membros. Esta é uma tendência preocupante já referida no relatório anterior.
A fim de resolver os problemas identificados, a Comissão emitiu recomendações relacionadas com o funcionamento do processo legislativo, a criação e a atuação de autoridades independentes e o ambiente favorável à sociedade civil.
Nos países candidatos, persistem preocupações no que diz respeito à aplicação sistemática das recomendações das provedorias de justiça e de outros organismos independentes. Subsistem igualmente desafios no que diz respeito à qualidade do processo legislativo e às consultas das partes interessadas.
2.2 A Situação da Hungria
A Hungria está particularmente aquém dos padrões democráticos da UE em áreas como corrupção, suborno, financiamento político, conflitos de interesse e falta de independência da mídia. A Comissão Europeia destacou a Hungria como um problema sistêmico para o Estado de Direito, aumentando as reformas recomendadas de sete para oito; estas incluem melhorias no seu sistema de justiça, fortalecimento da supervisão do lobby e da independência do regulador da mídia, bem como a remoção de obstáculos enfrentados por organizações da sociedade civil. O relatório é problemático para o governo de Viktor Orbán, pois bilhões em fundos da UE foram congelados devido a déficits no Estado de Direito.
A DIFÍCIL APLICAÇÃO DO ARTIGO 7.º DO TUE: União Europeia e Estado de Direito
*Naiara Posenato
Università degli Studi di Milano, Itália