Dignitas: a polêmica da morte digna sob a ótica do procedimento suíço e sua relação com o Direito Brasileiro

Luis Felipe da Silva Mathias*

O procedimento conhecido como morte assistida ou “suicídio assistido” é um tema de controvérsia global que permite a indivíduos com doenças terminais optarem por encerrar suas vidas de maneira digna, privilegiando a autodeterminação. Existem hoje alguns países que permitem ou ofertam assistência médica para este tipo de procedimento, ao passo que outros – como o Brasil – vedam a prática, criminalizando a conduta.

A morte assistida é permitida em quatro países da Europa Ocidental: Holanda, Bélgica, Luxemburgo e Suíça; em dois países norte-americanos: Canadá e Estados Unidos, nos estados de Oregon, Washington, Montana, Vermont e Califórnia; e na Colômbia, único representante da América do Sul. (CASTRO, P. R. M., 2016, p. 4).

Fundada em 1998 por Ludwig Minelli, advogado suíço, a Dignitas é uma associação sem fins lucrativos que oferece essa opção a seus membros que enfrentam sérios problemas de saúde. O debate em torno do suicídio assistido pela Dignitas não se limita à ética médica, mas também envolve profundas questões jurídicas internacionais, desafiando conceitos de direitos humanos, autonomia e a função do Estado na regulação de decisões de findar, de maneira digna, a própria vida.

Mas como funciona a Dignitas?

Os serviços oferecidos consistem em morte assistida, acompanhamento em fim de vida ao paciente seus familiares, garantia do cumprimento das vontades do paciente e assistência jurídica. Vale lembrar que muitas vezes, a solução outorgada pela entidade é a continuidade da vida, ou o tratamento, e não a morte. Entretanto, para aqueles que ultrapassarem todas as etapas do burocrático e exigente processo de seleção, poderá ser direcionado um auxílio digno.

Os requisitos para solicitar auxílio ao suicídio assistido são: tornar-se um membro da entidade; ter saúde mental e capacidade de discernimento; possuir nível mínimo de mobilidade física (pois é o próprio paciente que tem que realizar o ato de medicar-se); possuir uma doença terminal, incapacidade insuportável, e/ou dor insuportável e incontrolável.

Após enquadrar-se nos requisitos exigidos pela Dignitas, é necessário apresentar pedido formal para preparação do procedimento contendo carta pessoal assinada em endereçada à dignidade; os motivos que levaram o paciente à querela e descrição da condição física atual; esboço biográfico que descreve a relação do paciente com a família; relatórios médicos atualizados e antigos. Depois, é realizada uma análise que vincula se o paciente poderá ou não fazer jus à “luz verde” de liberação para o procedimento.

Outrossim, para tornar-se um membro da dignidade é preciso preencher a declaração de associação e enviá-la a entidade que irá analisar a declaração e confirmar ou não a adesão. O interessado deve ainda realizar o recolhimento de taxas que variam de 200 CHF a 300 CHF (inscrição e anuidade, bem como custear o procedimento de funeral, cremação, etc. que varia de 1.000 CHF a 5.000 CHF.

Nesse norte, é importante ressaltar que existem questões acessórias que vogam diretamente na resolução jurídica do problema. Ou seja, não basta o interessado associar-se à Dignitas. É preciso também que seja elaborado um arcabouço jurídico prévio a fim de que a pessoa interessada na morte assistida possa abrir a sucessão de maneira livre e desimpedida. Assim, não é possível simplesmente viajar para a Suíça e realizar o procedimento sem uma prévia resolução de questões jurídicas. Costuma-se adotar, portanto, praxes preventivas para possibilitar uma abertura de sucessão lícita, sem fraudar eventuais partilhas ou desamparar herdeiros.

Veja que até para morrer, obrigações jurídica devem ser fixadas e observadas. A validade das declarações, dos testamentos e até mesmo os riscos profissinoais envolvidos na elaboração de contratos e documentos jurídicos em países proibitivos levanta dilemas que somente podem ser aferidos na prática, cuja discussão ainda permanece muito incipiente.

Sob uma perspectiva internacional, o suicídio assistido pela Dignitas questiona se as leis nacionais podem ou devem se estender além das fronteiras nacionais para regular a conduta de seus cidadãos. Além disso, questões sobre jurisdição extraterritorial e o reconhecimento de decisões médicas estrangeiras surgem quando indivíduos buscam esse procedimento específico na Suíça. No Brasil, por exemplo, seria necessária a ratificação de vontade antes da realização do procedimento, e garantias extensas e minuciosas de que o consentimento foi livre e desimpedido, sob pena de responsabilidade pessoal do profissional que subscreveu os excertos.

Aqui, como a exemplo de outros países latinos, tal iniciativa – de entidade – é interpretada como crime contra a vida, na modalidade instigação (art. 122 do Código Penal), podendo ser direcionada ao seu representante legal. Assim, o Estado tutela a relação do indivíduo com relação não ao próprio corpo, tendo em vista que o objeto de tipificação não é suicidar-se, mas sim, fomentar, induzir, ou facilitar a morte de outrem. De maneira extensiva e analógica, seria impossível introjetar legalmente uma entidade parecida com a Digintas em terras brasileiras, espelhando a cultura de outros países latino americanos no que tange aos costumes e regulamentações sobre o tema.

É cediço que há um debate ainda bastante controverso e – independentemente de vertentes políticas, religiosas ou morais – cinge-se à questões preponderamente humanas. Isto é, mesmo que se discuta a legalidade do procedimento – fato que diverge opiniões e dependerá das balizas internas de cada ordenamento – a padronização da morte assistida está pautada na livre escolha do indivíduo enfermo, sob a lógica de que ninguém, além do próprio interessado, poderá ditar a métrica de dignidade no “intravida”.

Assim, abre-se uma margem de autodeterminação que transcende a chancela estatal, na medida em que é criada uma organização sem fins lucrativos para auxiliar aqueles que se encontram em situação de enfermidade intransponível, mediante acompanhamento preventivo e aprovação, para somente após, obterem autorização para findar sua experiência terrena.

Atualmente, não há legislação específica no Brasil para o testamento vital. No entanto, essa ausência não invalida seu reconhecimento. A legalidade no direito brasileiro não se restringe apenas à existência de leis, pois nosso ordenamento jurídico é composto tanto por normas legais quanto por princípios que necessitam de interpretação diante de casos concretos.

Na Constituição Brasileira, encontramos princípios como a dignidade da pessoa humana (art. 1º, III), a autonomia privada (implícito no art. 5º) e a proibição de tratamento desumano (art. 5º, III). Isso significa que nossa carta cidadã reconhece o direito à vida digna e à autonomia individual. Portanto, impor a alguém um tratamento indesejado, quando não contribui para uma vida plena, é considerado degradante.

É relevante mencionar que o Conselho Federal de Medicina aprovou, em 30 de agosto de 2012, a resolução n. 1995/12, que permite que o paciente registre seu testamento vital no prontuário médico. Essa resolução representa um avanço significativo no Brasil ao vincular o médico à vontade expressa do paciente. Além disso, o Judiciário reconheceu a constitucionalidade dessa resolução[1]. No entanto, para evitar questionamentos sobre a validade desses documentos e regulamentar questões específicas como registro, prazo de validade e requisitos mínimos, é necessária a promulgação de uma lei específica.

No mesmo norte, verifica-se algumas iniciativas[2] para dirimir o tema, a saber: PDL do Senado nº 149 de 2018; PDL do Senado nº 267 de 2018; PDL nº 231/2018 da ALESP; e também o substitutivo do PLS 149/218.

Por fim, é possível inferir que a análise do procedimento da Dignitas à luz do direito internacional destaca a falta de um consenso global sobre a legalidade e a permissibilidade do suicídio assistido. Enquanto alguns países legalizaram ou toleram o suicídio assistido, outros o consideram uma violação do direito à vida e uma negação do dever do Estado de proteger a vida de seus cidadãos. A falta de um quadro legal internacional uniforme cria um ambiente de diversidade normativa, onde diferentes países adotam abordagens variadas na regulamentação não só do suicídio assistido, mas também da eutanásia e de outras questões de disposição personalíssima do próprio corpo e da própria vida.

A existência de múltiplos regimes legais relacionados ao fim da vida ressalta o pluralismo jurídico na comunidade internacional, mas não só: ressalta a polêmica e atual necessidade de questionar o papel intervencionista do Estado nas escolhas individuais. Se não há livre escolha ao enfrentar uma situação física ou mental degradante, não deveria haver livre escolha ao desincumbir-se do fardo de uma vida indigna?

A questão central continua sendo o papel do Estado nessa escolha. A função da entidade sob análise é buscar promover, de maneira acompanhada, segura, e lícita, o procedimento de despedida de alguém que obteve consciência, pôde se tratar, e livremente escolheu o destino de sua partida. Nem todos que desejam, podem obter o auxílio, somente aqueles que cumprem os requisitos. Logo, não é uma escolha libertina, mas sim, liberal.

Talvez não devêssemos nos ocupar de aferir a legalidade do procedimento, sua criminalização ou sua notável e compreensível reprimenda cultural e religiosa, mas sim, a legitimidade estatal para ditar as rédeas do porvir, que continua sendo o marco divisório da discussão jurídica que nos une, afinal de contas, a iniciativa de findar a própria vida independe das normas que julgamos aptas para solucionar ou impor a sua continuidade.

[1] Ação Civil Pública n. 1039-86.2013.4.01.3500. Primeira Vara da Seção Judiciária de Goiás. Disponível em: https://www.testamentovital.com.br/_files/ugd/bc3517_5b2b9379ad264c7ba89aa326398fac1a.pdf Acesso em: 26/06/24.
[2] Disponível em: https://www.testamentovital.com.br/_files/ugd/bc3517_09d974f3e0034795b4bfd1713b7f02b0.pdf Acesso em: 26/06/24.
Disponível em: https://www.testamentovital.com.br/_files/ugd/bc3517_9efa0e90374948ca878a98b4bc7a34ad.pdf Acesso em: 26/06/24.
Disponível em: https://www.testamentovital.com.br/_files/ugd/bc3517_569ffa34618b45fd8e01893ff1a6a98a.pdf Acesso em: 26/06/24.
Disponível em: https://www.testamentovital.com.br/_files/ugd/bc3517_27b88742d1df4457ad75f6d8f70db35a.pdf Acesso em: 26/06/24.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BRASIL, Codigo Penal. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del2848compilado.htm Acesso em: 29/06/24.
BRASIL, Constituição Federal. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm Acesso em: 29/06/24.
Castro, M. P. R. de ., Antunes, G. C., Marcon, L. M. P., Andrade, L. S., Rückl, S., & Andrade, V. L. .. (2016). Eutanásia e suicídio assistido em países ocidentais: revisão sistemática. Revista Bioética, 24(2), 355–367. https://doi.org/10.1590/1983-80422016242136
Dignitas founder Ludwig Minelli: ‘We should have the freedom to choose how we die’ Disponível em: https://www.swissinfo.ch/eng/society/dignitas-founder-ludwig-minelli-we-should-have-the-fr eedom-to-choose-how-we-die/48495008 Acesso em: 27/06/24.
Portal “Dignitas”. Disponível em: http://www.dignitas.ch/?lang=en Acesso em: 28/06/24.
Portal “Testamento Vital” – Disponível em: https://www.testamentovital.com.br/ Acesso em: 29/06/24.

*Luis Felipe da Silva Mathias
Mestrando PPGD/UFSC e advogado.