Maria Clara Araújo Matos de Cavalcante*
A República da Áustria configura-se como uma república parlamentar federal no centro da Europa, atualmente governada por uma coalizão de centro-direita (ÖVP), centro-esquerda (SPÖ) e liberais (NEOS) desde as eleições de 2024 [1]. O país possui uma economia avançada, altamente integrada ao comércio global, sendo os serviços e a indústria transformadora seus principais motores econômicos, no entanto, enfrentou uma recessão entre 2023 e 2025, com a recuperação projetada apenas para 2026 [2]. Socialmente, o país demonstra altos índices de bem-estar, com saúde e educação públicas de qualidade, baixa desigualdade e um forte compromisso com a neutralidade climática até 2040, com mais de 75% da sua eletricidade proveniente de fontes renováveis [3].
Como membro da União Europeia desde 1995, a Áustria é um ator consistente nas instituições europeias, contando com 20 eurodeputados e tendo exercido a Presidência rotativa do Conselho da UE em 2018 [4]. Assim, embora o país frequentemente se alinhe às políticas centrais da UE, como a promoção do comércio global, ele adota uma postura cautelosa em relação a aprofundamentos da integração que possam comprometer sua soberania fiscal e neutralidade [5], priorizando a proteção de seus elevados padrões agrícolas e ambientais nacionais [6]. Nesse cenário de dualidade de interesses, onde a indústria vê oportunidades e a agricultura teme a concorrência desleal [6], o presente artigo se propõe a analisar o posicionamento institucional da Áustria em relação ao Acordo de Associação UE-Mercosul, destacando a complexidade de sua atuação e sua vinculação a uma decisão parlamentar que exige o voto contrário ao acordo em sua configuração atual [7].
A estrutura econômica austríaca, com um PIB de aproximadamente €481,2 bilhões em 2024, é notável pela sua alta integração comercial [8]. Setores industriais proeminentes incluem maquinário, autopeças, equipamentos eletrônicos, metais e produtos farmacêuticos, enquanto a agricultura tem menor participação, mas possui um significativo papel político [9]. Nas relações comerciais com o Mercosul, a Áustria exportou cerca de €1,30 bilhão em 2024 [10], e importou aproximadamente €512 milhões [11]. As exportações austríacas, em geral, equivalem a cerca de 60% do PIB, tendo como principais produtos os equipamentos, veículos, ferro/aço, e produtos farmacêuticos [12].
Assim, a sensibilidade ao Acordo UE-Mercosul reside primariamente no setor agrícola, que expressa receio quanto à concorrência de “carne barata” e mercadorias produzidas sob padrões ambientais e de bem-estar animal considerados inferiores [13]. Em contrapartida, a Associação da Indústria Austríaca (IV) percebe o acordo como uma oportunidade para as 1.400 empresas austríacas com negócios na região, que sustentam mais de 32 mil empregos [14].
A análise dos potenciais impactos do Acordo UE-Mercosul para a Áustria revela um balanço ambivalente. Por um lado, setores industriais como máquinas, autopeças e farmacêuticos preveem benefícios substanciais com a redução de tarifas. A IV e a Câmara da Indústria e Comércio (WKÖ) classificam o pacto como uma “oportunidade para crescimento e empregos” [15]. Adicionalmente, o acordo visa a proteção de 344 Indicações Geográficas da UE, assegurar o acesso a matérias-primas críticas para a transição energética, e facilitar a cooperação tecnológica e o acesso a serviços [16].
Em contrapartida, o setor agrícola austríaco, embora represente uma pequena parcela do PIB, é politicamente sensível e teme a concorrência desleal de produtos mais baratos do Mercosul [17]. A intensidade dessa oposição foi evidenciada quando o Ministro da Agricultura austríaco rotulou o pacto de “cavalo de Troia” [9]. Organizações ambientalistas como Greenpeace e Global2000 criticam veementemente a importação de produtos com agrotóxicos proibidos na UE, expressando preocupação com o desmatamento na Amazônia e a ineficácia dos mecanismos coercitivos previstos no Capítulo de Comércio e Desenvolvimento Sustentável (TSD) [18].
Dessa maneira, a posição oficial do governo austríaco é de oposição e cautela em relação ao texto atual do Acordo UE-Mercosul. Crucialmente, em 18 de setembro de 2019, o Comitê Europeu do Parlamento Austríaco aprovou uma solicitação vinculante que obriga o governo federal a votar contra o acordo nas instâncias europeias, que foi reafirmada em 24 de fevereiro de 2021. Mesmo com manifestações diversas de ministros da coalizão governista, o veto permanece dominante [7].
O Ministro da Agricultura, Norbert Totschnig (ÖVP), por exemplo, reiterou em setembro de 2025 sua oposição inalterada, afirmando que “no programa de governo há um não ao Mercosul” [19]. De igual modo, a Ministra do Meio Ambiente, Leonore Gewessler (Verdes), também afirmou que a Áustria não apoiará um acordo “às custas das pequenas explorações familiares e do clima” [20]. Além disso, o Ministro da Economia Wolfgang Hattmannsdorfer (ÖVP), que inicialmente defendeu reavaliar o acordo com a iminência do tarifaço de Donald Trump, sentiu-se “vinculado” pela deliberação parlamentar de 2019 [21].
Assim, é mister analisar polarização contida na atuação dos eurodeputados austríacos. Representantes do FPÖ e do Partido Verde manifestam oposição frontal ao acordo, com os do FPÖ acusando a Comissão Europeia de “escândalo democrático” ao tentar contornar os parlamentos nacionais [22]. A eurodeputada Verde Olga Voglauer, inclusive, foi relatora de um relatório que culminou na resolução oficialmente intitulada “Nein zum Mercosur” [23]. Em contraste, eurodeputados do NEOS (liberais) e aliados do ÖVP (centro-direita) têm demonstrado uma tendência mais favorável ao livre comércio e aberta à análise do texto final [24], Ademais, o bloco social-democrata (SPÖ) adota uma postura cautelosa, exigindo salvaguardas sociais e ambientais [25]. A despeito da postura condicionalmente favorável ao comércio livre de alguns membros do governo, o país permanece legalmente vinculado à resolução negativa do Parlamento Nacional de 2019 e 2021, o que o obriga a votar contra o acordo nas instâncias europeias [26].
O intenso debate na Áustria é alimentado pela participação de diversos atores da sociedade civil. O setor empresarial, representado pela WKÖ e pela IV, utiliza lobby e campanhas midiáticas para defender a ratificação, vislumbrando oportunidades de crescimento [27]. Contudo, os sindicatos alertam para a potencial perda de 1.200 empregos na Áustria devido ao acordo, além de riscos sociais e ambientais [28]. Organizações ambientalistas e de justiça social, como Greenpeace, WWF, GLOBAL 2000 e Attac, promovem protestos e petições, denunciando o impacto na biodiversidade, clima e agricultura local [16].
Nesse cenário de pressão, se torna evidente que as prioridades austríacas se encontram na responsabilidade ambiental e social, a legitimidade democrática da vontade parlamentar e um pragmatismo econômico cauteloso. Contudo, a Áustria começa a demonstrar certa flexibilidade para um texto aprimorado, buscando cooperação em segurança alimentar, cadeias de valor resilientes, e rotas seguras para matérias-primas críticas, como níquel, cobre e alumínio, mediante cláusulas de sustentabilidade e auditoria [21]. Em suma, embora imprevisível, uma eventual reversão da posição austríaca, permitindo um voto favorável condicional, dependeria da incorporação de salvaguardas concretas para os agricultores e da garantia de oportunidades às indústrias de alto valor agregado e à cooperação tecnológica. Tal mudança, obrigatoriamente sujeita à aprovação parlamentar, refletiria o entendimento amplamente compartilhado na sociedade austríaca de que os benefícios decorrentes do acesso a matérias-primas críticas e da cooperação tecnológica não podem se sobrepor aos compromissos ambientais e sociais que orientam a política nacional.
Referências:
[1] “Austria: Political Parties at a Glance”. Austria: Political Parties at a Glance. https://politpro.eu/en/austria/parties.
[2] Economic Forecast for Austria – European Commission. https://economy-finance.ec.europa.eu/economic-surveillance-eu-economies/austria/economic-forecast-austria_en.
[3] Energy System of Austria – International Energy Agency. https://www.iea.org/countries/austria.
[4] Austria – EU Country Profile | European Union. https://european-union.europa.eu/principles-countries-history/eu-countries/austria_en.
[5] Österreich, Außenministerium der Republik. Upcoming Rounds of Enlargement. https://www.bmeia.gv.at/en/european-foreign-policy/european-policy/eu-enlargement/upcoming-rounds-of-enlargement.
[6] Webteam, Attac. Studie: EU-Mercosur-Abkommen kostet 120.000 Arbeitsplätze | Attac Österreich. 5 de setembro de 2025. https://www.attac.at/news/details/studie-eu-mercosur-abkommen-kostet-120000-arbeitsplaetze.
[7] “Austrian Parliament Votes to Oppose EU-Mercosur Pact”. Reuters, 19 de setembro de 2019.https://www.reuters.com/article/markets/austrian-parliament-votes-to-oppose-eu-mercosur-pact-idUSL5N26A4OM/.
[8] PIB da Áustria | 1960-2024 Dados | 2025-2027 Previsão. https://pt.tradingeconomics.com/austria/gdp.
[9] “Landwirtschaftsministerium bekräftigt Nein zu Mercosur-Abkommen”. | BMLUK. https://www.bmluk.gv.at/themen/landwirtschaft/eu-international/mercosurabkommen.html.
[10] Press Releases | UniCredit Bank Austria Analysis. https://www.bankaustria.at/en/about-us-press-releases_81032.jsp.
[11] EU-Mercosur – a Boost for Jobs and Exports in Austria. https://policy.trade.ec.europa.eu/eu-trade-relationships-country-and-region/countries-and-regions/mercosur/eu-mercosur-trade-your-town/austria-mercosur-trade-your-town_en.
[12] Export Economy | Advantage Austria. https://www.advantageaustria.org/pa/zentral/business-guide/zahlen-und-fakten/wirtschaft/aussenwirtschaft/aussenwirtschaft.en.html.
[13] “Demokratie auf dem Prüfstand: Tierschutz Austria startet Petition gegen Mercosur-Abkommen”.https://www.ots.at/presseaussendung/OTS_20250910_OTS0053/demokratie-auf-dem-pruefstand-tierschutz-austria-startet-petition-gegen-mercosur-abkommen.
[14] Webteam, Attac. Studie: EU-Mercosur-Abkommen kostet 120.000 Arbeitsplätze | Attac Österreich. 5 de setembro de 2025. https://www.attac.at/news/details/studie-eu-mercosur-abkommen-kostet-120000-arbeitsplaetze.
[15] “WKÖ-Kopf/Mercosur: Bedenken ernst nehmen – aber Abkommen ist große Chance für Betriebe und Arbeitsplätze”. https://www.ots.at/presseaussendung/OTS_20190711_OTS0057/wkoe-kopfmercosur-bedenken-ernst-nehmen-aber-abkommen-ist-grosse-chance-fuer-betriebe-und-arbeitsplaetze.
[16] “Commission proposes Mercosur and Mexico agreements for adoption”. European Commission, https://ec.europa.eu/commission/presscorner/detail/en/https:\/\/ec.europa.eu\/commission\/presscorner\/detail\/en\/ip_25_1644.
[17] Richards, Laura. “Farmers’ Association of Lower Austria: Ready to Fight against MERCOSUR”. Time News, 6 de dezembro de 2024. https://time.news/farmers-association-of-lower-austria-ready-to-fight-against-mercosur/.
[18] EU-Mercosur-Abkommen: fatalen Folgen für Klima, Umwelt und Gesundheit | GLOBAL 2000. 24 de junho de 2025. https://www.global2000.at/news/offener-brief-mercosur.
[19] “Stocker and Meinl-Reisinger want to review Mercosur Agreement”. 3 de setembro de 2025. https://www.vol.at/stocker-and-meinl-reisinger-want-to-review-mercosur-agreement/9646433
[20] Gewessler: Österreich hat “ganz klare Position” zum Mercosur-Abkommen. 26 de abril de 2023. https://kurier.at/politik/inland/gewessler-mercosur-umwelt-klima-freihandelsabkommen/402426602.
[21] “EU-Unterausschuss: Hattmannsdorfer für neuerliche Debatte über Mercosur (PK0419/19.05.2025) | Parlament Österreich”. https://www.parlament.gv.at/aktuelles/pk/jahr_2025/pk0419#:~:text=Mercosur,Markt%20verhandelten%20Freihandelsabkommen%20einzulegen;
Basem, Sarhan. “Austria Shifts Stance on Mercosur Deal amid US Tariffs”. 5 de abril de 2025. https://brusselsmorning.com/austria-shifts-stance-on-mercosur-deal-amid-us-tariffs/70890/.
[22] Österreichs, Freiheitliche Partei. Mercosur-Abkommen ist demokratiepolitischer Putsch der EU-Kommission. https://www.fpoe.at/aktuell/artikel-detailansicht/mercosur-abkommen-ist-demokratiepolitischer-putsch-der-eu-kommission
[23] Parlament der Republik Österreich. Entschließungsantrag der Abgeordneten Olga Voglauer, Freundinnen und Freunde betreffend Nein zu Mercosur! XXVIII. Legislatura, 264/A(E), 13 de maio de 2025. Viena: Parlamentsdirektion. https://www.parlament.gv.at/gegenstand/XXVIII/A/264.
[24] “NEOS zu Mercosur: Blockaden lösen – Wohlstand ermöglichen”. https://www.ots.at/presseaussendung/OTS_20250903_OTS0153/neos-zu-mercosur-blockaden-loesen-wohlstand-ermoeglichen.
[25] “SPÖ-Schieder: Mercosur ist eine Gefahr für Umwelt und Arbeitnehmer:innenrechte”. https://www.ots.at/presseaussendung/OTS_20240903_OTS0129/spoe-schieder-mercosur-ist-eine-gefahr-fuer-umwelt-und-arbeitnehmerinnenrechte.
[26] “Nein zum Mercosur-Abkommen | Parlament Österreich”. https://www.parlament.gv.at/gegenstand/XXVII/E/135#:~:text=85,Dagegen%3A%20S%2C%20F%2C%20N.
[27] “WKÖ-Industrie-Bundessparteobmann Menz: Mercosur-Abkommen ist starkes Lebenszeichen für regelbasierten Freihandel”. https://www.wko.at/oe/oesterreich/wkoe-industrie-bundessparteobmann-menz-mercosur-abkommen.
[28] Webteam, Attac. “Studie: EU-Mercosur-Abkommen kostet 120.000 Arbeitsplätze | Attac Österreich”. 5 de setembro de 2025. https://www.attac.at/news/details/studie-eu-mercosur-abkommen-kostet-120000-arbeitsplaetze.
*Maria Clara Araújo Matos de Cavalcante
Graduanda de Direito pela UFBA – Universidade Federal da Bahia.