Observatory on European Studies _ Jurisdição europeia e Estados terceiros

2021-09-21

Naiara Posenato*

Inédita pronúncia do Tribunal de Justiça da União Europeia relativa à Venezuela reconhece a legitimidade ativa do Estado em Recurso de anulação

Com um acórdão adotado em 22 de junho no âmbito do processo República Bolivariana da Venezuela c. Conselho da União Europeia, Processo C-872/19 P, a Grande Seção do Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE) propôs uma leitura inédita do art. 263, parágrafo quarto, do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia (TFUE), que disciplina os critérios de admissibilidade do Recurso de anulação contra atos das instituições europeias. De acordo com a decisão, que trata da clássica questão da imunidade jurisdicional dos Estados, a Venezuela foi considerada legitimada a impugnar diante dos órgãos judiciais europeus um Regulamento que impõe medidas restritivas contra si. O TJUE cassou, com tal fundamento, acórdão proferido em 2019 pelo Tribunal Geral europeu em sentido contrário.

Como é sabido, em vista da deterioração contínua da situação em matéria de direitos humanos, de Estado de direito e de democracia na Venezuela, em 2017 o Conselho da União Europeia adotou sanções contra este Estado que se concretizaram em medidas restritivas introduzidas pelo Regulamento UE 2017/2063. Tais medidas impõem proibições à venda, fornecimento, transferência ou exportação a qualquer pessoa física ou jurídica, assim como a qualquer entidade ou organismo daquele país, equipamentos militares e tecnologias associadas suscetíveis de ser utilizados para fins de repressão interna, assim como de serviços técnicos ou financeiros relacionados ao fornecimento de tais equipamentos. Estas medidas restritivas foram prorrogadas através da Decisão (PESC) 2018/1656 e do Regulamento de Execução (EU) 2018/1653. Segundo a Relação do Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas de 2020, o Estado latino-americano é palco de violações sistemáticas dos direitos humanos, situação que obrigou mais de 5 milhões de venezuelanos, cerca de um sexto da população, a abandonar o país desde 2014.  

Em 6 de fevereiro de 2018, a Venezuela interpôs um Recurso de anulação baseado no art. 263 do TFUE do Regulamento 2017/2063 e dos atos que prorrogaram as medidas restritivas contra si diante do Tribunal Geral. O Conselho da União Europeia suscitou exceção de inadmissibilidade do recurso com base em três fundamentos, a saber: a Venezuela não teria interesse em agir, as disposições do Regulamento 2017/2063 não lhe dizem diretamente respeito e, enfim, o Estado não é “pessoa singular ou coletiva” em conformidade com o art. 263, quarto parágrafo, do TFUE. O Tribunal Geral, com acordão adotado em 20 de setembro de 2019, examinou e acolheu o segundo motivo de inadmissibilidade suscitado pelo Conselho, segundo o qual os artigos 2, 3, 6 e 7 do Regulamento contestado não diziam diretamente respeito à República Bolivariana da Venezuela, julgando inadmissível o recurso apresentado pelo Estado (Processo T 65/18). Cerca de dois meses depois, a Venezuela requereu a anulação da decisão de primeira instância diante do Tribunal de Justiça da UE, aduzindo como motivo a suposta interpretação errônea do Tribunal Geral da condição posta pelo parágrafo quarto do art. 263 do TFUE, ou seja, de que a situação jurídica do país não era diretamente afetada pelas disposições controvertidas.  

Não obstante não tenha sido objeto de contestação específica, o Tribunal de Justiça considerou necessário analisar ex ofício a questão de saber se a Venezuela poderia ser considerada uma “pessoa coletiva” na acepção do art. 263, parágrafo quarto, do TFUE. Em consonância com a própria jurisprudência constante, de fato, os juízes europeus podem fazê-lo em se tratando de motivo de ordem pública relativo à inobservância das condições de admissibilidade (§ 22 do Acórdão).  

Alinhando-se à posição já expressa pelo Advogado Geral G. Hogan, o Tribunal afirma que o conceito de “pessoa coletiva”, noção autônoma do direito europeu, deve ser reconstruído com base em uma leitura não restritiva, mas contextual e teleológica do art. 263, parágrafo quarto, do TFUE, à luz dos princípios do Estado de direito e da fiscalização jurisdicional efetiva, que por sua vez configuram valores fundamentais da União. O respeito ao Estado de direito é a razão pela qual nenhuma pessoa ou entidade afetada negativamente por um ato da União deve ser privada da faculdade de contestar este ato, ou ainda ver tal faculdade ser submetida à condição de reciprocidade. Nestas circunstâncias, expressa-se o Tribunal, um Estado terceiro “é tão suscetível como outra pessoa ou entidade de ser afetada negativamente nos seus direitos ou interesses por um ato da União e deve, assim, poder, no respeito dessas condições, pedir a anulação desse ato” (§ 50 do Acórdão).  

Sucessivamente, o Tribunal de Justiça concluiu que o Tribunal Geral cometeu um erro de direito ao considerar que as medidas restritivas previstas no Regulamento contestado não afetariam diretamente a situação jurídica deste Estado terceiro. Considerou que, mesmo sendo as proibições dirigidas aos operadores da União, essas poderiam prejudicar os interesses, nomeadamente econômicos, do Estado latino-americano (§ 68), e que, portanto, a anulação das restrições seria suscetível por si só de lhe conferir um benefício (§ 83). Ademais, afirma que a entrada em vigor do Regulamento UE 2017/2016 produziu a aplicação imediata das proibições previstas nos artigos 2, 3, 6 e 7, e que, consequentemente, não necessitaram de ulteriores medidas de execução, concluindo que a Venezuela tem legitimidade para impugná-las com base no art. 263, paragrafo quarto, do TFUE (§ 92). 

No próprio dispositivo, o Acórdão anula a decisão do Tribunal Geral na medida que havia declarado inadmissível o Recurso de anulação proposto pela Venezuela contra os artigos 2, 3, 6 e 7 do Regulamento 2017/2063 e remete o processo ao Tribunal Geral para que o mesmo se pronuncie quanto ao mérito do recurso. 

No âmbito do próprio processo diversos Estados manifestaram-se contra e a favor de tal extensão da jurisdição europeia a Estados terceiros; muitos foram favoráveis, como a Alemanha, a Holanda, a Bélgica, entre outros. Diversamente, alguns foram contrários (República Helênica, Eslovaca, da Estônia, etc.), e afirmaram que reconhecer a países terceiros um direito de impugnação contra atos da União pode colocá-la em situação de desvantagem em relação a países terceiros que não reconhecem a ela um direito análogo (reciprocidade). Da mesma forma, é razoável atender um aumento de demandas judiciais contra medidas restritivas adotadas pela União e que afetam Estados terceiros (e.g. Rússia, Turquia, etc.).  

Sem dúvida trata-se de uma decisão relevante e que reserva consequências para o futuro. 

 

*Naiara Posenato

Professora de Direito Comparado na Università degli Studi di Milano, Itália.