Observatory on European Studies _ E depois do Brexit, o Polexit?
Nuno Cunha Rodrigues *
Muitos ficaram surpreendidos pela decisão tomada, em 2016, pelo então Primeiro-Ministro David Cameron, de levar a referendo duas opções simples: a permanência do Reino Unido na União Europeia com um estatuto especial ou a saída do espaço europeu.
Ao contrário do que, por vezes se pensa, David Cameron não defendia a saída do Reino Unido.
Pretendia apenas assumir uma decisão política que, supostamente, agradava ao seu eleitorado, tradicionalmente conservador e reticente quanto às vantagens da integração na União Europeia (UE). David Cameron preconizava a definição de um estatuto (ainda mais) especial do Reino Unido enquanto membro da UE.
O resultado do referendo acabou por ser surpreendente, com a vitória do sim à saída. Tal motivou crises políticas internas no Reino Unido e um longo processo negocial com a União Europeia, com o objectivo de estabilizar o processo de saída e a relação futura entre o Reino Unido e a UE que só foi encerrado no final de 2020.
O Brexit representou um retrocesso grave no processo de construção europeia.
Pela primeira vez, em mais de 60 anos, um país tinha decidido sair da União. Recorde-se que essa hipótese nem sequer estava inicialmente contemplada nos tratados. Foi inscrita apenas em 2007, com a aprovação do Tratado de Lisboa e a consequente inclusão do artigo 50.º no Tratado da União Europeia.
A União Europeia que, até então, se havia erguido por meio de um processo de agregação de Estados assistiu, pela primeira vez, à separação de um Estado.
Muitos recearam que, depois do Reino Unido, outros Estados quisessem seguir o exemplo. Porém, cedo se verificou que esses receios eram infundados. Na verdade, o processo negocial que envolveu o Brexit permitiu identificar um grau de coesão entre Estados-membros raramente visto.
Entretanto, foram recentemente divulgadas notícias que relatam declarações de Ministros do Governo da Polónia, segundo as quais este país “não deve ficar na União Europeia a todo o custo”.[1]
Estas afirmações surgem na sequência da decisão do Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE), de 14 de julho de 2021, que determinou a aplicação de medidas provisórias à Polónia[2] com o intuito de suspender a criação de um comité disciplinar junto do Supremo Tribunal o que afectaria a independência do poder judicial.
As divergências entre a Polónia e a União Europeia sobre o respeito pelos princípios estruturantes da União Europeia surgiram, num passado recente, quando a Comissão Europeia acionou o mecanismo previsto no artigo 7.º do Tratado da União Europeia contra a Polónia e a Hungria.
Este artigo foi introduzido em 1997, pelo Tratado de Amesterdão, correspondendo a redação atual à versão resultante do Tratado de Nice.
Nesta norma previu-se a possibilidade de serem fixadas contra um Estado-membro medidas preventivas, por risco manifesto de violação grave dos valores da EU[3], aprovadas pelo Parlamento e, mais tarde, pelo Conselho por uma maioria de 4/5 dos Estados-Membros (cfr. artigo 7.º, n.º 1).
Encontra-se ainda em vigor, no mesmo preceito, um mecanismo de sanções, por violação grave e persistente dos valores da EU, cuja aplicação requer a unanimidade do Conselho Europeu (excluindo o Estado-membro em causa) a qual pode implicar, de forma subsequente, a suspensão de direito de voto decidida por maioria qualificada do Conselho (cfr. artigo 7.º, n.ºs 2 e 3 do TUE).
Aqui, um dos problemas centrais que se coloca a propósito da aplicação do disposto no artigo 7.º, n.º 2 resulta de ser necessário a quase-unanimidade (com a excepção do Estado-membro visado).
Neste momento o artigo 7.º foi acionado contra a Hungria (em 12.09.2018) e contra a Polónia (em 20.12.2017).
Sabendo-se que estes dois Estados não estão de acordo com a aplicação do artigo 7.º, fácil é compreender que, face à regra da quase-unanimidade, a oposição simultânea da Hungria e da Polónia impede que o disposto no artigo 7.º do TUE possa vir a ser aplicado contra qualquer um destes Estados.
O que está em causa nas declarações políticas proferidas na Polónia é, portanto, o efeito vinculativo das decisões proferidas pelo TJUE e princípios fundamentais da União Europeia – como a defesa do Estado de Direito (rule of law) ou o primado de Direito da União Europeia - que são, de alguma forma, questionados.
Aqui chegados, podemo-nos interrogar se este procedimento motivará a saída da Polónia da União Europeia.
A resposta é negativa.
Diversas sondagens recentemente realizadas permitem concluir que a esmagadora maioria da população polaca pretende que a Polónia continue a integrar a União Europeia.
Por outro lado, as declarações políticas foram proferidas por membros de um dos partidos que formam a coligação governamental na Polónia e não encontram suporte junto de todo o arco governativo.
Porquê, então, chamar a atenção para o assunto neste momento?
Julgamos que a ameaça feita por responsáveis políticos polacos é apenas sinal da demagogia que pode ser utilizada a propósito do processo de construção da União Europeia.
A criação de um certo distanciamento entre políticos nacionais e políticos europeus; a segregação entre Estados-membros e o projeto europeu ou a distinção entre o povo nacional e os outros povos europeus não contribuem, de todo em todo, para a afirmação de duas palavras-chave em torno das quais se move e sempre se moveu a União Europeia: confiança e solidariedade.
Deve, por isso, evitar-se o recurso a tentações populistas em torno do processo de construção europeia que, fragilizando-o, podem ir ao limite de provocar um efeito boomerang junto dos Estados-membros que as utilizam.
[1] V. notícia disponível em https://www.jornaldenegocios.pt/economia/europa/detalhe/ministro-polaco-diz-que-polonia-nao-deve-ficar-na-ue-a-todo-o-custo
[2] A decisão encontra-se disponível em https://curia.europa.eu/juris/document/document.jsf?text=&docid=244199&pageIndex=0&doclang=FR&mode=lst&dir=&occ=first&part=1&cid=8809614
[3] Cfr. artigo 2.º do Tratado da União Europeia:
“A União funda-se nos valores do respeito pela dignidade humana, da liberdade, da democracia, da igualdade, do Estado de direito e do respeito pelos direitos do Homem, incluindo os direitos das pessoas pertencentes a minorias.
Estes valores são comuns aos Estados-Membros, numa sociedade caracterizada pelo pluralismo, a não discriminação, a tolerância, a justiça, a solidariedade e a igualdade entre homens e mulheres.”
* Nuno Cunha Rodrigues
Professor Associado da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa
Cátedra Jean Monnet