OBSERVATORY ON EUROPEAN STUDIES__ A União Europeia pós-Brexit: primeiras impressões do Reino Unido como terceiro estado

2021-01-18

Por Joana Stelzer, Universidade Federal de Santa Catarina

 

A imprensa internacional trouxe imagens de funcionários da alfândega da Holanda confiscando sanduíches e outros produtos para próprio consumo, de passageiros de uma balsa oriunda do Reino Unido para a Holanda. A televisão pública holandesa NPO1 reportou agentes da alfândega abordando pessoas, no dia 6 de janeiro de 2021, que faziam a travessia da ilha britânica para o cais do porto de Hoek van Holland, área nas imediações de Roterdã. Apesar da solicitação dos passageiros em permanecerem com seus lanches, os oficiais não atenderam aos pedidos, alegando estrito cumprimento legal às novas regras do denominado pós-Brexit. (https://edition.cnn.com/travel/article/sandwich-brexit-netherlands-intl-scli-gbr/index.html) A orientação da Comissão Europeia nesse sentido, é clara: "Os bens pessoais que contêm carne, leite ou seus produtos introduzidos na UE continuam a representar uma ameaça real para a saúde animal em toda a União." O Instagram oficial da Aduana holandesa também tinha advertido que a partir de 1º de janeiro: “Se você viajar de volta à Holanda da Inglaterra, Escócia, País de Gales ou Irlanda do Norte, observe que regras diferentes se aplicam a partir de 1º de janeiro, por exemplo, para alimentação. Produtos típicos como cheddar, creme de leite e haggis escoceses não são mais permitidos ( https://www.instagram.com/p/CHulznhK0-m/ ).

O Guia da União Europeia, ‘Como se preparar para o Brexit: Guia Aduaneiro para as Empresas’, desde abril de 2019, já deixava claro que a partir da data de saída, as relações comerciais da União Europeia com o Reino Unido passariam a ser regidas pelas regras gerais da OMC, sem aplicação de preferências. E, como é amplamente difundido, entre essas regras estão os controles sanitários e fitossanitários.

Para o cidadão comum o novo cenário também mudou, pois anteriormente era permitido viajar entre o Reino Unido e a União Europeia transportando produtos à base de carne ou de leite, desde que para consumo próprio. Agora, desde 1º de janeiro, o panorama é outro. O mesmo passou a se aplicar aos produtos vegetais, frutas ou produtos hortícolas. Desde que fossem cultivados num país da União Europeia e devidamente isentos de pragas ou doenças, o trânsito era livre. A chegada à União Europeia de um país terceiro, no entanto, submete a pessoa em trânsito aos controles oficiais pelas autoridades. Tal fato exige confisco e destruição pelas autoridades alfandegárias de tais produtos, além de possível multa e/ou ação penal.

Naturalmente, as exigências se formaram nas duas direções. No site do governo do Reino Unido também há previsão de um ‘step by step’ para trazer mercadorias do bloco europeu, seja do ponto de vista comercial ou mesmo acerca dos novos controles sobre viajantes e suas bagagens.

Mas, essa é apenas uma, entre as diversas mudanças que foram impostas à circulação de mercadorias, após a saída do Reino Unido do bloco e, por consequência, do Mercado Único. Embora o acordo Brexit não imponha tarifas adicionais entre exportações e importações, foram impostos controles de segurança na alfândega que já estão trazendo lentidão ao trânsito de mercadorias. As regras de controle vegetal e animal são conhecidas no comércio internacional e visam trazer segurança às relações comerciais (embora sejam usadas de forma oportunista pelo protecionismo). O controle de pragas e doenças avançou nas últimas décadas, especialmente após a catastrófica ocorrência do chamado ‘Mal da Vaca Louca’. A doença que surgiu em 1980, na Inglaterra, referia-se a alguns bovinos que apresentavam sinais associados às disfunções do Sistema Nervoso Central. A doença evidenciou perdas econômicas no mundo inteiro e, principalmente, na Europa. Os reforços sobre controle de produtos de origem animal e vegetal tornaram-se mais intensos.

Os atuais controles aduaneiros das fronteiras em relação ao Reino Unido, na atualidade, giram sobre as consequências jurídicas de uma retirada do ex-parceiro do bloco e que suscitará futuras experiências conflituosas e repletas de dúvidas. O confisco de alimentos in natura de viajantes é algo conhecido por aqueles acostumados em transitar de um país para outro, mas ‘o confisco de um sanduíche de presunto pode ter se tornado um símbolo das consequências do Brexit’, como destacou a jornalista Charlotte Jansen (https://eenvandaag.avrotros.nl/item/hoe-een-in-beslag-genomen-broodje-ham-van-een-trucker-ineens-symbool-werd-voor-de-gevolgen-van-brexit/ ).

Desde a entrada do Reino Unido no bloco, igualmente feita de avanços e retrocessos, a saída vem acompanhada de muitas dúvidas que não conseguirão ser sanadas facilmente. O documento longo e complexo da saída do bloco é composto por mais de mil páginas que inclui diversos assuntos mercantis e, até mesmo, cooperação climática, energia nuclear civil e intercâmbio de informações sigilosas. Quanto aos serviços, que representam até 80% da economia britânica, o acordo trouxe expressões lacônicas, como o compromisso em "estabelecer um clima favorável para o desenvolvimento do comércio e do investimento entre eles". As capturas de pesca, igualmente, trarão um cenário de bastante incerteza, tendo ficado com um período de cinco anos e meio para implementar novas regras. E, assim, diversos outros assuntos virão à tona, afinal, a vida é mais dinâmica que o direito e suas regulamentações e muitas situações peculiares desafiarão o bloco de um lado e o Reino Unido do outro.

A síntese de todo esse processo, iniciado em 23 de junho de 2016, quando os cidadãos britânicos votaram pela saída da União Europeia, agora, pode ser assim resumido: o Reino Unido não é mais um membro, para a UE é um terceiro país e nesses termos será considerado.

 

*Joana Stelzer

Doutora em Direito, Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Professora Associada II e credenciada na Pós-Graduação em Direito para Mestrado e Doutorado na UFSC. Pesquisadora e Coordenadora do Núcleo de Estudos em Fair Trade/Comércio Justo (NEFT).