Observatory on European Studies _ O contrato EU-AstraZeneca e a controvérsia nos tribunais belgas

2021-08-17

Naiara Posenato*

Recente decisão sobre o atraso na produção e entrega das vacinas da razão a ambas as partes e suscita questões de direito internacional e comparado

A União Europeia adotou uma estratégia coral em matéria de vacinas contra a COVID-19, como esclarecido na Comunicação da Comissão COM (2020) 245 final, de 17 de junho de 2020, buscando garantir o acesso a vacinas seguras e eficazes à população dos Estados-Membros da UE, prévia produção e aprovisionamento das mesmas. Tal estratégia também era orientada a oferecer uma ampla carteira de vacinas, baseadas em diferentes abordagens tecnológicas e devidamente autorizadas pela Agência Europeia de Medicamentos, a fim de maximizar as possibilidades de sucesso na luta contra a Pandemia. Para tanto, a Comissão Europeia concluiu diversos  acordos prévios de aquisição (APA) com os produtores, financiando uma parte dos custos iniciais da produção das vacinas com fundos provenientes do Instrumento de Apoio de Emergência. Com base em tal política comum, até o presente momento, quatro vacinas contra a COVID-19 obtiveram autorização para serem utilizadas na EU e constituíram objeto de acordos de aquisição: aquelas desenvolvidas pela BioNTech e pela Pfizer, pela Moderna, pela AstraZeneca e pela Johnson & Johnson. Ainda se encontram em fase adiantada de negociação para introdução no mercado europeu as vacinas Sanofi-GSK e CureVac, e em etapa de negociação exploratória as vacinas Novavax e Valneva.

Dentre os primeiros acordos celebrados com produtores de vacinas autorizadas para utilização no território europeu, salienta-se o Advance Purchase Agreement (“APA”) for the production, purchase and supply of a covid-19 vaccine in the European Union, concluído entre a Comissão Europeia, em representação dos 27 Estados-Membros, e a empresa AstraZeneca em 27 de agosto de 2020. Com base em tal contrato os Estados-Membros poderiam adquirir 300 milhões de doses da vacina da AstraZeneca, com uma opção ulterior de mais 100 milhões de doses, a distribuir proporcionalmente com base na população. O contrato em questão foi tornado público em 29 de janeiro de 2021, mas com diversas partes ocultadas, relacionadas a informações confidenciais como pormenores de faturação, mas também quantidades e prazos de entrega.

Porém, já a partir dos primeiros meses de 2021, a empresa anglo-sueca começou a enfrentar problemas no processo de produção das vacinas junto a algumas unidades produtivas, o que gerou atrasos na entrega e redução do número total de doses prometidas para UE. Ao mesmo tempo, aparentemente, AstraZeneca não encontrara problemas análogos no que se refere ao fornecimento das doses vacinais destinadas ao Reino Unido, cuja vacinação da própria população prosseguia sem problemas e com ritmo cerrado, rumo à retomada da normalidade naquele País. Esta situação paradoxal apresentava-se, à primeira vista, como um favorecimento ao mercado inglês que gerou críticas por parte da sociedade europeia e expôs politicamente os vértices da União Europeia. Desta forma, após um período de infrutíferos contatos entre as partes em vista da resolução da questão, em 23 de abril de 2021 a UE ingressou, através da Comissão Europeia, com um processo diante do Tribunal de Première Instance Francophone de Bruxelles contra a sociedade de direito sueco AstraZeneca AB com base no art. 584 do Code Judiciaire belga, segundo o qual as partes podem requerer ao Presidente da relativa Corte uma medida de natureza provisória em casos urgentes.

Nas próprias alegações a UE afirmou que a AstraZeneca violara diversas cláusulas contratuais do APA, que não teria empregado, conforme concordado no contrato, os “melhores esforços razoáveis” para fabricar e entregar 300 milhões de doses de vacinas nos prazos estabelecidos e teria subscrito acordos com terceiros em violação das obrigações assumidas (em especial com o Reino Unido). Com base em tais alegações, requeria que fossem fornecidas 90 milhões de doses de vacinas (suplementares em relação às 30,2 milhões de doses já fornecidas) até o final de junho e 300 milhões de doses de vacinas até o final de setembro 2021.

A AstraZeneca AB contestou, sustentando que se vinculara, através do APA, somente a uma obrigação de meio para fabricar e entregar tais doses e não de resultado, visto o alto grau de inovação e de complexidade envolvidos na produção de vacina inédita, em um tempo muito mais breve do que o tradicionalmente necessário para tanto. Alegava, ademais, que o APA concluído não contém nenhuma cláusula de prioridade ou de exclusividade a favor da UE.  

Em 28 de abril a primeira audiência do relativo processo foi realizada e em18 de junho o Tribunal de Première Instance Francophone de Bruxelles, Section civile adotou a Ordonnance RG 2021/48/C. Na decisão, após ampla reconstrução dos fatos, a Corte reconheceu, em primeiro lugar, a própria competência com base na eleição contratual do foro (p. 33, p. IV, A); a competência dos tribunais belgas baseou-se, de fato, no art. 18.5.b) do APA concluído entre as Partes, que continha cláusula de eleição de foro a favor dos órgãos judiciais daquele país. 

Da mesma forma, afirmou estar presente a circunstância da urgência na demanda apresentada pela UE, como condição formal da própria competência (pp. 34-39). Concretamente, o risco é de que a ausência ou o atraso na aquisição da imunidade coletiva dos Estados-Membros devido à insuficiência de vacinas repercutisse sobre as liberdades fundamentais (como a liberdade de circulação, por exemplo), impactando também negativamente no âmbito econômico.

No que concerne a apreciação do ponto de vista substancial, a decisão precisou inicialmente que o seu fundamento jurídico, vista a natureza do processo, deveria ser avaliado de forma sumária e somente prima facie. Prossegue afirmando que a reconstrução da vontade das partes indica a comum intenção de assumir obrigações de meio e não de resultado (p. 43, para. 36) e não foi demonstrado pela UE que AstraZeneca, na execução concreta das próprias obrigações, não teria agido como outra empresa farmacêutica razoavelmente teria feito nas mesmas condições para fabricar e entregar 300 milhões de doses nos prazos estabelecidos. Todavia, AstraZeneca deixou deliberadamente de empregar a sede de fabricação situada no Reino Unido para a produção das vacinas destinadas ao mercado europeu e, assim fazendo, neste particular violou a própria obrigação de “empregar os melhores esforços razoáveis” (p. 51, para. 46). Assim, a não execução completa da prestação acordada deve-se, segundo a juíza belga, em parte sim ao inadimplemento contratual de AstraZeneca, mas em parte também às dificuldades ligadas ao caráter inédito da crise sanitária (p. 59, para. 67). Ademais, não foi reconhecida a existência de qualquer acordo de exclusividade ou prioridade a favor da UE, embora AstraZeneca não tenha sido de todo transparente sobre o teor dos seus acordos com terceiros e sobre as dificuldades de executar o contrato com a Europa (p. 59, p. 61). Em consideração disto, a Corte condenou a Empresa a entregar a União Europeia 15 milhões de doses até 26 de julho; 26 milhões de doses até 23 de agosto e 15 milhões de doses até 27 de setembro, quantidade, porém sensivelmente inferior à requerida pela UE.   

A decisão brevemente comentada nesta sede apresenta, no parecer de quem escreve, diversos pontos de interesse. Em primeiro lugar, é peculiar verificar que a mesma foi saudada positivamente por ambas a partes, fato não muito frequente no que concerne processos judiciais. Segundo a AstraZeneca, "All other measures sought by the European Commission have been dismissed, and in particular the Court found that the European Commission has no exclusivity or right of priority over all other contracting parties." A Comissária Ursula Von der Leyen, por sua vez, afirmou que “This decision confirms the position of the Commission: AstraZeneca did not live up to the commitments it made in the contract. It is good to see that an independent judge confirms this”.

Do ponto de vista estritamente jurídico põe questões de direito internacional e de direito comparado de grande relevância que, naturalmente poderão ser somente assinaladas nesta sede. Um tema interessante refere-se à lei aplicável à controvérsia. O APA continha uma cláusula de eleição de lei, com base no qual o mesmo era submetido às leis da Bélgica (art. 18.4 – Governing Law). A questão da identificação da disciplina substancial do contrato não foi explicitamente tratada na decisão que, como acenado, era de natureza em geral provisória e sumária; todavia, este elemento não exclui que seja necessário estabelecer qual lei seria aplicável ao contrato para, justamente, verificar o fumus boni iuris da demanda. A fundamentação da decisão refere-se em geral a alguns artigos do Code civil (belga), por exemplo, para a interpretação do contrato, confirmando a eleição feita pelas partes. Neste âmbito, um aspecto que não passou despercebido pela doutrina foi a possibilidade de submeter o APA à Convenção das Nações Unidas sobre os contratos de compra e venda internacional de mercadorias (CISG) de 1980, a sua aplicabilidade objetiva ex art. 1 (1) a e a consideração da eleição da lei belga como opt out (art. 6) do instrumento.

Outro aspecto diz respeito à suposta vantagem no acesso às vacinas que teria garantido ao Reino Unido o contrato concluído entre este Estado e a AstraZeneca, em relação aquele concluído pela empresa com a União Europeia. Embora trate-se, segundo uma leitura, de instrumentos praticamente idênticos, os benefícios seriam derivados, por exemplo, do fato de que o contrato inglês asseguraria maior certeza, pois seria baseado no Direito inglês, que toma em consideração o fato de que as partes executaram as próprias obrigações em exata conformidade com o disposto no contrato (a famosa “construction”, ou interpretação literal do direito contratual inglês). Diversamente, o contrato europeu baseado no direito belga, focaria no comportamento das partes e, em específico, se as mesmas empenharam-se ao máximo a entregar as mercadorias agindo em boa-fé.

As relações judiciais entre a UE e AstraZeneca no que concerne a compra e venda de vacinas anti COVID-19 ainda não foram definidas completamente, visto que se encontra pendente diante das cortes belgas um segundo processo, iniciado em 11 de maio deste ano, de natureza ordinária. Será interessante acompanhar também o desenvolvimento deste segundo processo e as questões jurídicas que poderá apresentar.

 

*Naiara Posenato

 Professora de Direito Comparado na Università degli Studi di Milano, Itália.