OBSERVATORY ON EUROPEAN STUDIES__Jurisdição internacional e apostas on-line: showdown do Tribunal de Justiça da União Europeia
Por Naiara Posenato, Università degli Studi di Milano
No dia 10 de dezembro de 2020 a Sexta Secção do tribunal de Justiça da União Europeia proferiu um interessante acórdão em tema de comércio eletrônico, no que concerne a competência jurisdicional em caso de contrato on-line celebrado por consumidor, segundo o Regulamento (CE) no. 44/2001 (Bruxelas I). Especificamente, o Tribunal traz elementos da própria jurisprudência para consolidar o conceito de consumidor e esclarecer situações que podem gerar dúvidas: afirma a condição de consumidor não obstante que a atividade (jogo de azar, no específico jogo de pôquer on-line) fosse desempenhada durante muitas horas por dia, que o usuário possuísse amplos conhecimentos a respeito e que tivesse obtido, com o tempo, ganhos significativos através da mesma.
Trata-se do acórdão A.B. e B.B. contra Personal Exchange International Limited, Processo C-774/19, decisão prejudicial cujo objeto é a interpretação do art. 15, no. 1, do citado Regulamento (CE) n° 44/2001, do Conselho, de 22 de dezembro de 2000 relativo à competência judiciaria, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria civil e comercial (que corresponde ao art. 17 do atual Regulamento (UE) no. 1215/2012 ou Regulamento Bruxelas I bis). O pedido foi apresentado no contexto de uma controvérsia entre A.B. e B.B., pessoas físicas domiciliadas na Eslovênia, e Personal Exchange International Limited (doravante PEI), sociedade comercial com sede em Malta, relacionada à retenção, por esta última, de valor em dinheiro no âmbito de um contrato de jogo de pôquer on-line.
É sabido que a legislação da União europeia relativa à competência jurisdicional e ao reconhecimento de sentenças contém um verdadeiro regime de proteção a favor do consumidor em derrogação à regra geral, por se tratar da parte mais fraca da relação contratual. O consumidor dispõe de critérios de competência mais favoráveis para si, e a eleição de foro somente é admitida em hipóteses limitadas e mormente após o surgimento da controvérsia.
Por outro lado, a prática contratual eletrônica internacional geralmente prevê a adesão, por parte do usuário, às condições gerais predispostas pelo prestador de serviço on-line que contêm, na maioria das vezes, a escolha do direito aplicável e do foro competente em caso de controvérsias. Naturalmente estas cláusulas respondem aos interesses da parte que as predispôs, e podem portar a um agravamento da situação jurídica subjetiva e processual do usuário, por exemplo obrigando-o a ingressar com uma ação judicial ou a defender-se em um país estrangeiro. Portanto, determinar se a parte pode ou não caracterizar-se como consumidor a fins da aplicação da norma regulamentar europeia assume uma importância evidente no âmbito do comercio internacional tradicional e eletrônico.
Os fatos e o desenvolvimento do processo
Os fatos do processo principal revelam que B.B. abriu uma conta de usuário no site da sociedade PEI, aceitando em tal ocasião as condições gerais estabelecidas por tal sociedade, dentre as quais a eleição dos órgãos jurisdicionais da República de Malta como competentes para dirimir eventuais litígios entre as partes. No período entre março de 2010 e maio de 2011 B.B. ganhou aproximadamente 227.000 euros jogando em referido site. Em 10 de maio de 2011, a conta de B. B. foi bloqueada e o valor citado foi retido pela PEI sob a alegação de que B. B. infringira o regulamento de jogo estabelecido pela própria PEI ao criar uma conta suplementar, para a qual utilizou o nome e os dados de A. B. (cfr. § 12-13 do Acórdão).
Desta forma, em maio de 2013, B.B. ingressou com uma ação diante dos tribunais do seu próprio domicilio (Eslovênia) requerendo a restituição do montante retido por PEI; PEI constitui-se para contestar a competência dos tribunais eslovenos, alegando que B.B. é um jogador de pôquer profissional e que, portanto, não poderia recorrer aos tribunais do país onde está domiciliado, em conformidade com o artigo 16.°, n° 1, do Regulamento no. 44/2001. A ação foi julgada procedente em primeira e segunda instâncias, tendo sido afastadas as exceções de incompetência. Sucessivamente, PEI interpôs recurso de “Revision” perante o órgão jurisdicional de reenvio, o Vrhovno sodišče (Supremo Tribunal esloveno), a quem cabia decidir se a competência decisória deveria ser atribuída aos órgãos jurisdicionais eslovenos, tendo em conta o domicílio de B. B., ou aos tribunais malteses, tendo em conta a eleição do foro realizada através da aceitação das condições gerais da PEI. Para responder a questão era necessário estabelecer se B.B. celebrou ou não um contrato com PEI na qualidade de consumidor, ou seja, “para finalidade que possa ser considerada estranha à sua atividade comercial ou profissional”, no sentido do art. 15, no. 1, do Regulamento no. 44/2001 (cfr. § 14-19 do Acórdão).
O Supremo Tribunal Esloveno decidiu então suspender o processo nacional e submeter ao Tribunal de Justiça a questão prejudicial neste sentido, tendo em vista que embora o usuário esloveno não fosse titular de um registro formal de atividade de jogador e não contasse com formas de patrocínio ou tivesse oferecido a sua atividade a terceiros como serviço remunerado, ao mesmo tempo, essa pessoa garantiu a própria subsistência durante vários anos com os rendimentos obtidos desse modo e praticava o jogo durante uma media de 9 horas por dia útil (cfr. § 20-22 do Acórdão).
A análise jurídica
Na própria resposta, o Tribunal de Justiça reitera inicialmente que a disciplina especial prevista a favor dos consumidores pelo Regulamento Bruxelas I (e Bruxelas I bis), justifica-se em razão da categoria ser considerada a parte mais fraca da relação contratual. O caráter derrogatório das regras de competência dos arts. 15 a 17 do Regulamento no. 44/2001 implica, portanto, que a mesma seja interpretada de forma restritiva (neste sentido, cita expressamente o Acórdão Schrems, de 25 de janeiro de 2018, C-498/16, nos. 27 e 29 e ulterior jurisprudência referida).
Segundo o Tribunal, somente a posição de uma pessoa em um determinado contrato, celebrado “fora e independentemente de qualquer atividade ou finalidade de ordem profissional, unicamente com o objetivo de satisfazer as próprias necessidades de consumo privado de um indivíduo” (§ 30), deve ser considerada para a sua qualificação como consumidor, e não a consideração de outros fatores como a relevância das quantias ganhas através de contratos de serviços em geral ou, especificamente, do jogo de pôquer on-line (assim Acórdão Petruchová, de 3 de outubro de 2019, C-208/18, no. 50 e ulterior jurisprudência referida). Até porque a generalidade ínsita a tal critério seria contrária ao elevado grau de previsibilidade que as regras de competência jurisdicional devem apresentar (§ 35-36 do Acórdão). Neste mesmo sentido, a condição subjetiva do consumidor, os conhecimentos e as informações de que dispõe em um determinado domínio, não negam a sua condição (§ 37-40).
Em seguida, o Tribunal passa a analisar a questão da regularidade da atividade para a qualificação como consumidor, considerando que, no caso em apreço, B.B. consagrou ao jogo de pôquer on-line uma media de 9 horas por dia útil. Mais uma vez a jurisprudência precedente é tomada em consideração pela decisão aqui brevemente comentada, inclusive em nome de uma maior coerência, i.e. quando esta jurisprudência interpreta o conceito de consumidor à luz de outras fontes do direito da União europeia. A decisão a que se faz referência é o Acórdão Kamenova, de 4 de outubro de 2018 (C-105/17, nos. 37 e 38), em que se decidiu sobre os elementos necessários para a qualificação de uma pessoa física como comerciante para fins da aplicação da Diretiva 2005/29/CE relativa às práticas comerciais desleais e à Diretiva 2011/83/UE relativa aos direitos dos consumidores. Todavia, o Tribunal de Justiça observa que naquela decisão a regularidade da atividade foi considerada apenas um dos elementos a ser tomado em conta para qualificar o profissional em oposição ao consumidor mas que não determinou, por si só, a condição da pessoa. Também salienta que um fator determinante é que esta atividade regular seja destinada à venda de produtos ou à oferta de serviços, o que não se verificou no caso sob análise, visto B.B. não propôs a terceiros serviços ligados à atividade de jogos de pôquer e não declarou oficialmente a própria atividade (crítico quanto à posição do Tribunal de considerar a declaração oficial ou o registro da própria atividade elemento necessário para a caracterização de profissional ou de consumidor, M. LEHMANN, The CJEU Does not Keep a Poker Face and Goes All In on Consumer Protection).
Em suma, a presente decisão repropõe critérios já presentes na jurisprudência do próprio Tribunal para a caracterização do consumidor que tendem a valorar a tipologia de contrato concluído, sem atribuir relevância a variáveis subjetivas quais regularidade da atividade, conhecimento do usuário ou ganhos obtidos. O seu aporte não é inovador, mas de consolidação. E assim, senhores, les jeux sont faits!
* Naiara Posenato
Professora agregada de Direito Comparado junto à Universidade de Milão “La Statale”.