Observatory on European Studies _ O Acordo Mercosul – União Europeia: desenvolvimento e reflexões

2021-07-08

Elizabeth Accioly*

Coube-me tratar do timeline do Acordo UE-Mercosul, como parte introdutória para, de seguida ouvir os demais oradores, que abordaram assuntos relacionados com o Acordo propriamente dito, com a Política Comercial Comum da UE, com o Pacto Ecológico Europeu, nova bandeira da UE, entre outros temas de vanguarda nas relações comerciais e de investimentos entre a União Europeia e a América Latina.

Encetei pelos primeiros passos do Mercosul, que estava prestes a completar, alguns dias após o evento realizado, três décadas de vida, no dia 26 de março de 2021. Um dia antes, em 25 de março, era o Tratado de Roma que apagava as velas do seu 64º aniversário.

E voltando as atenções para o início das relações entre UE e América do Sul, constata-se que a atração entre os dois blocos começou intensa, depois arrefeceu, e hoje está quase a atingir o “ponto de não retorno”, após duas décadas de negociações.

Em meados dos anos 90, o recém-criado Mercosul, que nascia com a assinatura do Tratado de Assunção, de 26 de março de 1991, entre Argentina, Brasil, Paraguai e Uruguai, já despertava o interesse dos EUA e da Europa. Por um lado, estava a ser cobiçado para integrar a proposta de formar a maior zona de livre comércio do mundo - a ALCA, que uniria toda a América, à exceção de Cuba e,  de outro, para firmar um acordo de livre comércio com a  União Europeia, impulsionada pelo Tratado de Maastricht, de 1992, sob o comando de  Jacques Delors, um dos mais emblemáticos chefes do executivo europeu.

Na disputa venceu a Europa, e em 15 de dezembro de 1995, Madrid serviu de palco para a assinatura do Acordo Quadro de Cooperação Mercosul-União Europeia. As negociações começaram efetivamente em 1999, com ventos muito favoráveis a prenunciar a sua conclusão em 2004, quando um vendaval inesperado, por desacertos quanto à parte agroalimentar, bloqueou o acordo. Alguns dos negociadores de então relataram que aquele teria sido o timing perfeito para a sua concretização e que uma pitada de vontade política e de diplomacia, de ambas as partes, teria resolvido a questão.

Em 2010, Espanha é, uma vez mais, palco da reaproximação dos dois blocos económicos, quando aquele país exercia a presidência semestral da UE, porém, sem o entusiasmo de outrora, com parcas ofertas de parte a parte. E, na esteira de novos mercados e oportunidades, a UE e os EUA decidiram, em 2014, negociar um Acordo de Parceria Transatlântica sobre Comércio e Investimento, mais conhecido pela sigla TTIP, que veio desacelerar a vontade política de avançar no Acordo Mercosul-UE.

Entretanto, quando se imaginava que esta aproximação comercial entre os EUA e UE poderia interferir no desfecho, já adiado tanta vez, entre o Mercosul e UE, até pelos poucos avanços nas negociações comerciais entre os dois blocos económicos, surge um facto novo – a eleição de Donald Trump, em 2016 e a sua releitura sobre a integração regional, colocando-a de parte  como  prioridade do seu mandato, com a doutrina da “América First”. Os EUA congelaram as negociações do TTIP, retiraram-se do Acordo Transpacífico (TTP), concluído em 2015, e renegociaram o Tratado de Livre Comércio do Atlântico Norte- NAFTA que, no entender do então presidente norte americano, era prejudicial para o seu país.

Era urgente, por isso, aproveitar esta mudança de vento que soprava novamente para a América do Sul. A mudança de governo da Argentina, no início de 2016, com Maurício Macri à frente daquele país, trouxe uma nova dinâmica ao bloco regional, com a apresentação de novas ofertas de acesso ao mercado.   Em setembro de 2016, os quatro sócios do Mercosul, emitiram uma declaração conjunta a convidar a UE a retomar as  negociações:

“Os Chanceleres da República Argentina, Susana Malcorra, da República Federativa do Brasil, José Serra, da República do Paraguai, Eladio Loizaga, e da República Oriental do Uruguai, Rodolfo Nin Novoa, reunidos em Nova York, examinaram a agenda de negociações comerciais externas do bloco. Nessa perspectiva, destacam a importância de impulsionar as negociações do Acordo de Associação Birregional Mercosul–UE, pelos tradicionais laços culturais, comerciais e de investimentos que já unem os dois blocos e pelo grande potencial de crescimento dos fluxos de comércio e investimentos entre eles.”

Em 23 de junho de 2016 realizou-se  o  referendo sobre a permanência do Reino Unido na UE, que culminou no Brexit, fragilizando a Europa dos 28, até pela repercussão das desgastantes rondas de  negociação até a sua saída concretizada, com acordo, em dezembro de 2020. A demonstração de uma UE fortalecida, pós-referendo britânico, levou à  aceleração de acordos bilaterais que foram concluídos entre a União Europeia e o Canadá – CETA, em 21.09.2017,  o Acordo UE-Japão, que entrou em vigor em 31.01.2019, o Acordo-EU-Singapura, que entrou em vigor em 21.11.2019, o Acrodo UE-Vietname, que entrou em vigor em 1.08.2020, o Acordo EU-México, concluído em 28.04.2020, todos acordos de livre comércio, com a previsão de redução significativa de tarifas alfandegárias,   e last but not least, o"acordo de princípio" sobre Investimentos entre UE-China, assinado em  30.12.2020. 

Voltando ao acordo UE-Mercosul, as negociações bilaterais foram retomadas a partir do primeiro semestre de 2016, e em outubro do mesmo ano,  na 10ª Ronda de negociação Mercosul-UE, foi divulgado o seguinte comunicado:

“Esta ronda de negociaciones, que se llevó a cabo del 10 al 14 de octubre en la capital belga, ha sido “la primera completa” desde 2012 y la primera en realizarse tras el esperado intercambio de ofertas de acceso a mercados del pasado 11 de mayo, algo que no se producía desde 2004 y que ambas partes perseguían desde que decidieron retomar las tratativas en 2010. Los equipos negociadores de ambos bloques “analizaron el conjunto de los textos y reglas en negociación” y, además, “intercambiaron puntos de vista sobre cómo avanzar en los temas de acceso a mercado e señalaron que se comprometen a realizar todos los esfuerzos necesarios para avanzar en las negociaciones”.

Com relação aos altos e baixos das negociações entre blocos económicos ou entre Estados e blocos económicos, de se destacar, por oportuno, as certeiras palavras do Ex-Diretor Geral da OMC, Roberto Azevêdo:

"Todas as negociações comerciais são complexas, levam tempo. [...] Essas são negociações de peso e que podem trazer impulso importante para a economia dos dois blocos (…) e avançam em vários caminhos ao mesmo tempo -- bilateral, regional e multilateral. Os países - e a UE como bloco - procuram as oportunidades onde quer que elas estejam. [1]

Em outubro de 2017 foi apresentada uma proposta da UE, recebida com algum ceticismo por parte dos sócios do Mercosul, pois houve um retrocesso nas ofertas apresentadas em 2004, nomeadamente em relação ao etanol e à carne bovina, considerada inaceitável para os sócios sul-americanos. Em 2004, ano do timing perdido, a proposta foi de 100 mil toneladas de carne bovina e 1 milhão de toneladas de etanol, e em 2017 a oferta por parte da UE reduzia para 70 mil toneladas de carne bovina e 600 mil toneladas de etanol. A respeito da oferta por parte da UE, no setor da carne bovina, manifestou-se o então presidente da Sociedade Rural Argentina, Luís Miguel Etchevehere:

“Nos dijeron que ellos podrían abrir el mercado solo para ese limitado monto anual, que además debemos repartir entre los cuatro socios del bloque. ¿Sabe a cuánto equivale esto? Pues a 137 gramos por año para cada habitante de la UE. Es decir: apenas dos hamburguesas anuales. Para el bloque, el mercado de carne vacuna es central. Y aspiramos como mínimo a contar con 390.000 toneladas que se puedan comercializar libremente en Europa. Si ese monto se divide por los 4 miembros del mercado mercosureño, a cada uno le tocaría exportar tanto como ½  hamburguesa anual por consumidor europeo. Sin duda, para nosotros, todo eso es un desafío. La gran cuestión es mostrar que el acuerdo con la Unión Europea vale la pena”. [2]

A então negociadora chefe da Direção-Geral de Comércio da Comissão Europeia, Sandra Gallina, justificou a posição da UE:

“Este nivel propuesto –el de las 70.000 toneladas—se había conseguido luego de una ‘delicada negociación’ en el interior de la U.E. con los tres países que ofrecen mayor resistencia a admitir la competencia agrícola ganadera de los sudamericanos: Francia, Irlanda y Bélgica. Fueron ellos los que impulsaron una oferta que para el Mercosur es inaceptable.”

Carlos Abijaodi, representante da Confederação Nacional da Indústria brasileira nas negociações, concordou com a proposta europeia, mesmo colocando em risco a qualidade global do acordo, como parece ter ocorrido quanto às ofertas acima referidas:

“Para nosotros es muy importante que el acuerdo salga. Esa es la postura del sector fabril ante el siguiente dilema: o se realiza un acuerdo con “limitaciones” de uno y otro lado; o se suspende “sine die”. Y, si ocurre esto último, otras regiones o países ocuparán el lugar del Mercosur. Por ejemplo: Canadá y Japón; a quienes sumarían Australia y Nueva Zelandia, más una ampliación del acuerdo de Europa con México”.

Em 2018 é eleito o novo presidente do Brasil, Jair Bolsonaro que, pese embora tenha demonstrado um posicionamento dúbio quanto à integração regional, prosseguiu nas tratativas, incentivado pelo Presidente argentino e, em 28 de junho de 2019, foram concluídas as negociações entre Mercosul e União Europeia.

Bem, mas nem tudo tem corrido conforme planeado para a entrada em vigor do Acordo Mercosul-UE, pelo facto de alguns Estados europeus exigirem o respeito a normas referentes à proteção do meio ambiente, sobretudo por parte do Brasil, na esteira das queimadas que assolaram o pulmão do mundo - na Amazónia e no Pantanal, em 2019, logo após o tão festejado anúncio da conclusão do Acordo. 

A maneira pouco diplomática gerida pelo Brasil, a respeito dos incêndios,  fez com que  alguns países, como a França, a Holanda, a Irlanda e a Bélgica, exigissem a assinatura de um compromisso ambiental por parte do Mercosul para, só então,  avançar para a última parte, antes da sua entrada em vigor: a ratificação.

Ora bem, se a Espanha foi a responsável pela aproximação da UE e do Mercosul, em 2010, quando exercia a presidência da UE, é agora Portugal, que está na presidência rotativa da UE, neste primeiro semestre de 2021, que está a envidar todos os esforços na difícil missão de convencer os Estados membros a avançar no Acordo. E se por um lado a presidência portuguesa tem conseguido o apoio de alguns Estados, por outro lado tem encontrado muita resistência e exigências de outros.  umas abertas no céu, mas que ainda há algumas nuvens negras a serem dissipadas.

O sinal de fumo branco veio de uma carta aberta, assinada no final de 2020, por Estados que querem ver o acordo em vigor, como a República Tcheca, Dinamarca, Estônia, Espanha, Finlândia, Itália, Letônia e Suécia, que se juntam à presidência portuguesa para prestar apoio.

No início de março, o Brasil e os demais sócios do Mercosul declararam que estão dispostos a firmar uma declaração de sustentabilidade ambiental, para desbloquear este impasse, trazendo esperanças de tempos mais amenos. Porém a Áustria já veio dizer que é contrária a esta declaração e exige mais garantias dos membros do Mercosul. por considerar que o Acordo agravará o processo de desmatamento da Amazónia.

A presidência portuguesa encerra em junho de 2021 e certamente não conseguirá dissipar as nuvens negras, até porque há eleições que se aproximam na Alemanha e na Holanda, e no próximo ano há eleições em França, com a forte pressão dos agricultores, contrários ao Acordo, e com a subida de Marine Le Pen nas intenções de voto, e no Brasil, onde tudo está em aberto, o que faz prever tempo instável, com poucas abertas para a sua ratificação.

E assim seguimos, a acompanhar o boletim meteorológico, numa altura em que o mundo precisa de se reinventar, pelos estragos causados pela pandemia, que atingirá em cheio a economia. Este acordo seria para os 31 países envolvidos, um prenúncio de tempos melhores.

Para terminar, gostava de deixar algumas provocações para reflexão: 

  1. Se o acordo UE-EUA – o TTIP, acima já tratado, tivesse seguido em frente na administração de Donald Trump, será que os Estados membros da UE colocariam obstáculos quanto a sua ratificação, tendo em vista a promessa de campanha, que foi cumprida, da denúncia do acordo de Paris, por parte dos EUA?
  2. E por falar em Acordo de Paris, o Brasil continua no Acordo, apesar de uma ameaça não cumprida do atual Presidente. Em termos de cumprimento ou incumprimento do Acordo do Clima, certamente o Brasil não é o único país que está a desrespeitá-lo, somando-se a ele muitos Estados europeus. Será que as razões levantadas pela UE para travar a entrada em vigor do Acordo EU-Mercosul são genuínos, ou a bandeira ambientalista está sendo agitada para esconder algum protecionismo velado?
  3. Em dezembro de 2020 a UE e a China firmaram um acordo político que abre a porta para futuras relações comerciais e de investimentos. Nenhum país europeu colocou sequer a hipótese de vetá-lo. Será que o desrespeito aos direitos humanos não tem a mesma relevância que as questões ambientais?
  4. E quanto ao aumento do transporte de carga entre o continente europeu e americano, que deve ocorrer com a entrada em vigor do Acordo UE-Mercosul, por via marítima, com navios altamente poluentes? Isso não é também um assunto que preocupa o meio ambiente?
  5. Por fim, não seria mais prudente ter um país que pode parecer recalcitrante na proteção do meio ambiente, dentro de um Acordo, até para cobrar deste país a “pacta sunt servanda”, do que deixá-lo a deriva – arrastando consigo outros três Estados, como é o caso do Mercosul?

Portanto, os governos passam e os Estados permanecem. O céu por vezes pode estar muito nublado, mas quando se ultrapassa as nuvens, abre-se sempre um céu de brigadeiro. Os EUA são um bom exemplo disso, com a volta ao Acordo do Clima, no passado dia 19.02.2021, sob a nova administração de Joe Biden.

Resta-nos acompanhar os próximos boletins meteorológicos, augurando que o ponto de não retorno do Acordo Mercosul-UE se concretize.

 

[1] Acordo comercial UE-Mercosul poderá impulsionar as duas economias. Agencia Lusa, 03 Nov2016

[2] https://www.clarin.com/economia/acuerdo-mercosur-union-europea-quejas-trabas-ingreso-carne_0_BJIH_gmhW.html, 4-10-2017

 

*Elizabeth Accioly

Diplomada em Estudos Europeus pelo Instituto Europeu da Faculdade de Direito de Lisboa.

Doutora em Direito Internacional pela Universidade de São Paulo.

Professora da Universidade Europeia de Lisboa.

Professora visitante do Curso de Mestrado do Unicuritiba-Brasil.

Advogada em Portugal e no Brasil.