Observatory on European Studies _ Cimeira Social do Porto: a União Europeia não é apenas Mercado Único
Joana Stelzer*
A Cimeira Social do Porto, ocorrida em 7 de maio de 2021, trouxe destacada reflexão quanto aos valores europeus, não somente da União Europeia ou do Mercado Único, mas de um povo que possui uma jornada histórica marcada por conflitos, desafios e conquistas. O Comissário europeu do Emprego e Direitos Sociais, Nicolas Schmit, defendeu que o bloco “não é apenas mercado único”, mas que há efetiva preocupação com o trabalhador e com a proteção dos cidadãos. O registro é emblemático. Desde que a integração econômica se revelou um objetivo elementar para a saída da Europa da Segunda Guerra Mundial, a livre circulação de mercadorias era um pressuposto da recuperação econômica e da criação de empregos. A formação do mercado era o carro-chefe. A uniformização jurídica, sob tal ponto de vista, representou uma das estratégias da complexa engenharia normativa desenhadas no horizonte do Velho Continente.
Naquela ocasião, erguia-se a marca da supranacionalidade para fazer progredir a economia do bloco, pois dela dependiam as demais conquistas de prosperidade. Mais além se foi, inclusive. No âmbito de múltiplas legislações era preciso guiar a integração para o reconhecimento dos ordenamentos entre si. Essa orientação veio por intermédio do Tribunal de Justiça da União Europeia (na época denominado Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias) e de um mecanismo impactante para a época: o princípio do reconhecimento mútuo. A livre circulação de mercadorias, com isso, restava garantida não somente pela eliminação dos direitos aduaneiros e das restrições quantitativas (além da proibição de medidas de efeito equivalente), mas pela aceitação recíproca dos ordenamento nacionais dos Estados-membros que além de acatar o ordenamento dos outros Estados-membros (obrigação de fazer), necessitariam abster-se de tomar alguma medida (obrigação de não fazer) que discriminasse a produção de um Estado-membro. Naquele momento, os países lutavam por interesses individuais, receando as consequências nacionais que a formação de um mercado singular poderia trazer. O individualismo, ainda, capitaneava a mente das pessoas, empresas e Estados.
Na origem do debate sobre o reconhecimento das normas pátrias, cumpre lembrar, havia a alegação de incompatibilidade entre a legislação de um Estado-membro e a competência dos Estados nacionais. O caso processual envolvia a Alemanha, que estipulavas limites de dosagem alcoólicas às bebidas, especialmente quanto à importação da França do famoso licor designado Cassis de Dijon. A importação da bebida restava proibida, já que não se encaixava na legislação germânica (ou seja, com teor alcoólico entre 15% e 20%). Nos moldes de uma lei federal germânica, a comercialização dos licores destinados ao consumo humano era autorizada, mas somente se contivesse um teor não inferior a 32%, fora dessa concentração não se enquadraria na categoria ‘Licores’. Com isso, a Alemanha defendia que competia aos Estados-membros esse tipo de regulamentação e, ademais, sequer se tratava de medida discriminatória de mercado. Nessa ocasião, o Tribunal erigiu o princípio do reconhecimento mútuo, deixando claro que o interesse geral do mercado deveria primar sobre as particularidades individuais dos Estados, fazendo com que os países aceitassem as mercadorias, tendo por base o ordenamento jurídico na origem como suficiente para disciplinar o assunto (ao invés das regras no destino). Era esse o epicentro estratégico da formação do mercado europeu, circunstância que impactou duramente todos os países do bloco. Na continuidade vieram outras decisões semelhantes que sempre fizeram lembrar tratar-se de uma integração de cunho econômico. Essa meta era notória e repetidas vezes reafirmada.
Valores Socias também se fizeram acompanhar ao longo da história europeia, mas foi com a Covid 19 que valores humanistas foram exaltados com maior vigor. Aliás, sempre esteve ínsita no processo de integração a preocupação com a humanidade, já que a promoção da paz foi um motor de aproximação entre os povos.
Por ocasião da Cimeira Social na cidade do Porto, ao reunir os líderes dos Estados-membros e das instituições europeias, ficou claro o compromisso político sobre metas e medidas concretas rumo à execução do Pilar Social Europeu que, em termos gerais, prevê três grandes metas para 2030: empregar, no mínimo, 78% da população (entre 20 e 64 anos), capacitar 60 % de todos os adultos (anualmente) em ações de formação e diminuir os 15 milhões de pessoas (sendo cinco milhões crianças) em risco de pobreza e exclusão social. Do Compromisso Social do Porto, firmado em 7 de maio, extrai-se que a União Europeia deve estar focada no plano de ação para implementar o Pilar Europeu dos Direitos Sociais: “os 20 princípios do Pilar Europeu dos Direitos Sociais, proclamados em 2017 na Cimeira Social de Gotemburgo para o Emprego Justo e o Crescimento, formam uma bússola que nos deve guiar neste caminho para uma recuperação forte, sustentável e inclusiva, e para a convergência económica e social ascendente”.
Parece ser esse o ponto nevrálgico de um bloco que já passou pela fase pragmática, econômica e supranacional. Agora, a Europa necessita revelar de forma efetiva sua dimensão social para o avanço das próximas décadas. Em que pese a tragédia humana desencadeada pela pandemia, o fenômeno também trouxe a lume a oportunidade para valorizar a fraternidade na conjugação de forças econômicas. Já não se pode mais pautar o mercado único pela dureza normativa e alcance de metas, como somente disso se tratasse a integração. Empresas e pessoas se beneficiaram do modelo integracionista, mas há trabalhadores em situação precária no bloco que foram evidenciados pelo cenário pandêmico e que não podem passar desapercebidos. Ações de solidariedade, aliás, também envolves o bloco do ponto de vista mundial por intermédio da COVAX (ou COVAX Facility, iniciativa da OMS para aquisição e distribuição de vacinas aos países mais pobres do planeta).
Em síntese, fica a marca indelével desse momento para o bloco, pautada pela criação de emprego, geração de competências e redução da exclusão social. O tempo (breve) se encarregará de trazer as respostas aos compromissos assumidos para confirmar uma nova etapa de aproximação entre os países. Nesse caso, se a fraternidade conseguir desempenhar seu papel, o Velho Continente poderá dizer que a integração não é somente econômica e que a União Europeia não é somente um Mercado Único.
Joana Stelzer*
Doutora em Direito, Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC)
Professora Associada II e credenciada na Pós-Graduação em Direito para Mestrado e Doutorado na UFSC.
Pesquisadora e Coordenadora do Núcleo de Estudos em Fair Trade/Comércio Justo (NEFT)