Observatory on European Studies - As divergências entre Brasil e União Europeia sobre compras governamentais no Acordo Comercial Mercosul – UE

2023-11-01

 Joana Stelzer* e Thyago de Pieri Bertoldi**

Em 28 de junho de 2019, os representantes do Mercado Comum do Sul (Mercosul) e da União Europeia (UE) anunciaram consenso político sobre um acordo comercial birregional entre os dois blocos econômicos. O acordo promete constituir uma das maiores áreas de livre comércio do mundo, englobando um mercado estimado em 780 milhões de pessoas e equivalente a, aproximadamente, 25% do PIB global. Além da eliminação progressiva do imposto de importação sobre vários bens comercializados entre os países integrantes do Mercosul e da UE, uma ampla gama de temas serão objeto de regulamentação para garantia de maior segurança jurídica no comércio internacional entre os blocos econômicos.

O anúncio sinalizava o que parecia ser o fim de um processo de 20 anos de negociações, marcado por diversas suspensões e retomadas. Perto de um desfecho, porém, as tratativas encontraram novos obstáculos. Um dos principais entraves era o receio dos Estados-membros do Mercosul, em especial do Brasil (atual presidente rotativo do bloco), em renunciar à possibilidade de utilizar-se do poder de compra estatal, por meio de contratações públicas, para promoção da reindustrialização de seus países.

As contratações públicas constituem mercado bastante relevante dentro do comércio internacional. As estimativas são de que movimentem no mundo, anualmente, US$ 1,7 trilhões e correspondam, em média, entre 10% a 15% do PIB de um país. A relevância econômica das contratações públicas fez com que organizações internacionais e outras instituições com foco em questões diversas (economia, transparência, corrupção, dentre outras) passassem a criar princípios, standards e regras para regulamentação das contratações públicas. Os negócios públicos tornaram-se objeto de regulamentação também no âmbito do comércio internacional.

São diversos os exemplos de diplomas que compõem o que atualmente pode ser denominado de Direito Internacional das Contratações Públicas, sendo os principais: a Lei Modelo da Comissão das Nações Unidas para o Direito Comercial Internacional (Uncitral), os Princípios para Melhoramento da Integridade da Contratação da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), o regime de contratação pública da União Europeia e o Acordo Plurilateral sobre Contratos Públicos (ACP) da OMC. Essas normas convivem, ainda, com outros acordos comerciais bilaterais, regionais e multilaterais sobre contratações públicas, a exemplo do próprio Acordo Comercial pretendido pelo Mercosul e pela União Europeia.

Essencialmente, no Acordo Comercial Mercosul-UE, as compras governamentais são objeto de um único capítulo, composto de vinte e oito artigos e dois apêndices, responsáveis por determinar os limites de cobertura aplicáveis aos Estados membros da União Europeia e do Mercosul. O ponto sensível a gerar protestos por parte do Mercosul, em especial do Brasil, está relacionado às limitações trazidas pelo Acordo Comercial de que seus países signatários promovam políticas públicas horizontais por meio de suas contratações públicas.

Na visão brasileira, as contratações públicas não se destinam unicamente ao atendimento das necessidades imediatas da Administração, mas constituem, também, relevante instrumento de intervenção estatal na economia a induzir boas práticas ambientais, sociais e de governança no mercado. Para o Estado brasileiro, a contratação pública com resultado mais vantajoso deve proporcionar o acesso a bens e serviços com economicidade e, ao mesmo tempo, auxiliar na prossecução do desenvolvimento nacional sustentável. São escopos, à luz da legislação brasileira, igualmente relevantes a serem buscados. 

Assim, o Brasil considera que a licitação possui ‘função social’ e deve ser utilizada, sempre que possível, na promoção de políticas públicas. São diversos os exemplos de políticas públicas horizontais promovidas pelo Brasil em suas contratações públicas. Nesse sentido, citam-se: incentivo à participação de pequenas empresas e empresas de pequeno porte nos negócios públicos; compliance ambiental, com medidas de logística reversa, reciclagem e redução de emissão de gases poluentes; estímulo à inclusão de mulheres vítimas de violência doméstica no mercado de trabalho; necessidade de instituição de programas internos de integridade em alguns casos; entre outros. A proibição de participação em contratações de empresas que se encontrem com pendências trabalhistas são indicativos do grande espectro de políticas públicas horizontais almejadas pela via da contratação pública. 

O Brasil, à semelhança de tantos outros países, também utiliza suas compras governamentais para tentar estimular a industrialização nacional. Nas licitações públicas promovidas pela Administração Pública brasileira, é possível a previsão de margens de preferência, a depender do objeto pretendido, de até vinte por cento para bens manufaturados e serviços nacionais que atendam a normas técnicas brasileiras. Havendo reciprocidade e previsão em tratado, esse benefício pode ser estendido a outros Estados-partes do Mercosul.

A relevância da estratégia de valer-se de contratações públicas para promoção de políticas públicas horizontais está ligada diretamente ao movimento de ‘contratualização da ação administrativa’. Trata-se de movimento originário não só do processo de maior abertura da Administração Pública ao consenso e ao diálogo com a sociedade, mas também (e, talvez, principalmente) pelas limitações orçamentárias e financeiras impostas pelas políticas de austeridade verificadas, em especial, a partir da década de 1990. Com menos recursos para investimento direto, o Estado precisava pensar vias alternativas para promoção das diversas políticas públicas sob sua responsabilidade e encontrou nas contratações públicas um campo fértil para isso.

O receio dos integrantes do Mercosul (sobretudo do Brasil, reforça-se) é que o Acordo Comercial com a União Europeia implique significativa restrição a essa prerrogativa.  Isso se deve à previsão no Acordo Comercial da não discriminação, na forma de seus subprincípios do Tratamento Nacional e da Cláusula da Nação Mais Favorecida, como princípio geral. 

Desse modo, o Acordo Comercial Mercosul-UE não só proscreve qualquer forma de discriminação entre fornecedores nacionais e estrangeiros no âmbito do Acordo, mas também impõem que todas as empresas interessadas em contratar com os países signatários recebam o mesmo tratamento em relação a seus bens e serviços. Aliada a essa previsão, encontram-se, por exemplo, vedações abrangentes à adoção de regras de origem e offsets, bem como restrições nas exigências de documentos de habilitação e de qualificação de empresas interessadas em contratar com o poder público. 

O Acordo Comercial Mercosul-UE (na esteira de tantos outros diplomas internacionais sobre a matéria) segue a matriz axiológica de priorização do value for Money, isto é, a melhor contratação para a Administração Pública é a menos custosa em termos financeiros. Por consequência lógica dessa visão, a consideração de elementos não-econômicos nos procedimentos de contratações públicas deve ser evitada pelos signatários do tratado.

O espaço de manobra deixado pelo Acordo Comercial Mercosul-UE aos países que pretendem a utilização de políticas públicas horizontais nas contratações públicas é bastante estreito. O artigo 5 do capítulo sobre compras governamentais exclui a aplicação das normas do tratado, basicamente, para o setor de defesa e em situações que envolvam bens jurídicos bastante específicos, incluindo, por exemplo, licitações para inclusão de pessoas com deficiência, entidades filantrópicas, trabalho de presos, além das medidas necessárias à proteção da moral, ordem e segurança públicas, seres humanos, animais e meio ambiente e propriedade intelectual.

A percepção dos países do Mercosul de que o Acordo Comercial com a UE trará limitações ao uso do poder de compra estatal como instrumento de intervenção econômica está correta. Se finalizado, nenhum dos signatários poderá adotar livremente políticas horizontais discriminatórias em contratações públicas, a exemplo de margens de preferência ou da predileção de empresas nacionais para adjudicação de determinados objetos. Por outro lado, reveste-se de certo exagero considerar que o Acordo Comercial Mercosul-UE é completamente refratário ao uso das contratações governamentais como um instrumento de política econômica. Elas continuam viáveis em determinadas circunstâncias e observados alguns critérios. 

Em primeiro lugar, porque nem toda contratação pública conduzida dentro desses blocos econômicos deverá observância às regras constantes no capítulo do Acordo Comercial. Em uma sistemática similar ao ACP da OMC, o regramento somente incidirá se aquela licitação ou contrato administrativo enquadrar-se nos critérios de cobertura horizontal (valor mínimo) e vertical (órgãos e entidades contratantes) estabelecidas nos apêndices ao capítulo sobre compras governamentais. Desse modo, a promoção de políticas públicas horizontais em contratações não abarcadas pela cobertura do Acordo Comercial continua possível em sua plenitude.

Mesmo nas compras governamentais abrangidas pelo Acordo Comercial, a promoção de políticas públicas é possível, desde que: a) não possua natureza discriminatória: por exemplo, políticas que objetivam o cumprimento da lei interna do país licitante (p. ex.: exigência de a empresa não possuir débitos trabalhistas ou diretor condenado por crimes contra a Administração em seus quadros); ou, b) se discriminatória, inserir-se em um dos bens jurídicos excepcionados pelo artigo 5 do Acordo Comercial.

Assim, acredita-se que a visão dos países do Mercosul (em especial brasileira) das contratações públicas como instrumento de intervenção na economia e de promoção do desenvolvimento nacional sustentável pode ser compatibilizada com as disposições do Acordo Comercial com a UE. Essa harmonização, porém, depende da disposição política dos países do bloco sul-americano em abdicar parcialmente de seu espaço decisório em relação ao uso das compras governamentais para promoção de políticas públicas. A celebração do Acordo Comercial depende da concordância diplomática entre os dois blocos econômicos quanto à suficiência do conteúdo dessa renúncia. De qualquer modo, cumpre frisar, o acordo necessita muito mais de superação relativa a uma matriz axiológica desenvolvimentista, do que manifestações oriundas de cultura dogmático-jurídica.

 

*Joana Stelzer

Doutora pela UFSC. Pós-Doutora pela Faculdade de Direito da USP. Professora Associada III e credenciada na Pós-Graduação em Direito para Mestrado e Doutorado (PPGD/UFSC).

**Thyago de Pieri Bertoldi

Advogado da União. Mestrando em Direito Internacional, Econômico e Comércio Sustentável na Universidade Federal de Santa Catarina (PPGD/UFSC).Â