Observatory on European Studies - Acesso do trabalhador à identificação das empresas tomadoras na terceirização na Espanha e no Brasil: uma abordagem garantista
Desirre Dorneles de Avila Bollmann* e Marco Antônio César Villatore**
A reestruturação produtiva capitalista iniciada com a crise do petróleo na Década de 1970[1], a globalização e o aumento da concorrência internacional e o advento das 3ª.[2] e 4ª.[3] Revoluções Industriais[4] afetaram diretamente o mundo do trabalho, implicando na flexibilização da legislação protetiva e na precarização, e alcançou a Espanha sobretudo na Década de 1990, o qual se rendeu ao discurso de que a redução de direitos trabalhistas importaria em aumento de empregos.[5]
Tendo vigido por quase 40 anos na Espanha, com desastrosa precarização do trabalho no sentido, principalmente do estabelecimento de insegurança aos atores sociais pelo estabelecimento de contratos intermitentes de pouquíssima duração, os quais chegaram a atingir cerca de 1/3 dos postos de trabalho espanhóis, criando um descompasso entre o padrão trabalhista espanhol e europeu, essa política foi revista no ano de 2021, com a reversão desse quadro, onde restabelecido, mediante acordo negociado com diversos atores sociais, e consubstanciado no Real Decreto Lei 32/2021, dentre outras modificações, o retorno da contrato de trabalho por prazo indeterminado como padrão de contratação.[6]
O que chama a atenção no cotejo entre a flexibilização trabalhista espanhola e a Reforma Trabalhista brasileira de 2017 – sem embargo que em 2017, o governo Temer e o Rogério Marinho tenham defendido no Congresso que a Reforma Trabalhista era inspirada no modelo espanhol[7] – é que, em alguns dispositivos, a Reforma brasileira possui dispositivos mais precarizantes que a própria legislação espanhola, que é entendida como uma das mais flexibilizadoras da União Europeia.
Toma-se por exemplo o artigo 42, itens 1, 2 e 3 do “Estatuto de los Trabajadores” espanhol[8] em cotejo a redação dada à Lei 6.019, de 3 de janeiro de 1974, modificada pela Lei 13.429, de 31 de março de 2017 (Lei da Terceirização).
Mesmo antes do Real Decreto Lei 32/2021 (que aumentou os prazos de responsabilização das tomadoras de serviço) o artigo 42, itens 1, 2 e 3 do “Estatuto de los Trabajadores” espanhol estabelecia a obrigação da prestadora de informar ao trabalhador a razão social e o endereço completo da tomadora – identificando-a para o trabalhador – bem como a responsabilidade na modalidade solidária entre as empresas tomadora e prestadora de serviços, em razão de atividade ligada ao fim empresarial.
Na legislação brasileira, sobre o desvelamento da razão social e endereço completo da tomadora de serviços para o trabalhador, nada consta na Lei 6.019/1974 modificada pela Lei 13.429/2017.
A falta de identificação da(s) empresa(s) tomadora(s) de serviços dificulta o exercício dos direitos e o acesso à Justiça dos trabalhadores terceirizados, os quais na prática jurídica contemporânea não raro tem dificuldade de identificar seus tomadores para fins de responsabilização, notadamente em caso de “quarteirização” de serviços.
Também a Lei 6.019/1974 modificada pela Lei 13.429/2017 previu a possibilidade de desconcentração tanto das atividades-meio quanto das atividades-fim da empresa tomadora para terceirizadas (artigo 4º.-A e 5º.-A) porém limita a responsabilidade à subsidiária (artigo 5º.–A e parágrafo 5º.).
Em que pese exista a garantia no caso de descumprimento da legislação trabalhista pela prestadora, a responsabilidade subsidiária impõe ao trabalhador um iter maior e acesso mais penoso à Justiça, na medida em que é necessário o esgotamento da responsabilidade da prestadora (normalmente empresa de menores recursos) para que se atribua a responsabilidade à tomadora – isso, num contexto em que o empregador sequer há a obrigação legal da prestadora informar quem são seus tomadores.
Luigi Ferrajoli[9] propõe que as normas e a ação do Estado somente são válidas e eficazes, bem como o Estado deve justificar a sua ação, de acordo com critérios ligados à Democracia e aos Direitos Humanos. Para ele:
“o Estado de direito equivale à democracia, no sentido de que reflete, além da vontade da maioria, os interesses vitais de todos. Neste sentido, o garantismo, como técnica de limitação e disciplina dos poderes públicos, voltado a determinar o que estes não devem e o que devem decidir, pode bem ser concebido como a conotação (não formal, mas) estrutural e substancial da democracia: as garantias do Estado, os interesses dos fracos respectivamente aos dos fortes a tutela das minorias marginalizadas ou dissociadas em relação às maiorias integradas, as razões de baixo relativamente às razões de alto”.
A partir da ótica da Democracia e dos Direitos Humanos, não se pode negar ao trabalhador brasileiro o direito à informação que viabilize o seu acesso à Justiça.
De fato, conforme artigo 23, da Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948, toda a pessoa tem direito ao trabalho e a condições equitativas e satisfatórias de trabalho.
Pelo artigo 21, item 2, toda a pessoa tem direito de acesso, em condições de igualdade, às funções públicas do seu país.
Para o artigo 28, toda a pessoa tem direito a que reine, no plano social e no plano internacional, uma ordem capaz de tornar plenamente efetivos os direitos e as liberdades humanas.
Tais direitos se conectam no sentido de que, para que se promova condições satisfatórias de trabalho, deve ser propiciado ao trabalhador os mecanismos capazes de facilitar o acesso às funções públicas e à Justiça – como o direito à informação necessária para viabilizar eventual identificação dos responsáveis subsidiários no caso de terceirização e sua responsabilização perante a Justiça do Trabalho.
O direito à informação do trabalhador sobre quem são seus tomadores deve ser considerada cláusula obrigatória dos contratos de terceirização, por se tratar de direito relacionado à democracia e aos Direitos Humanos, e, em se tratando de validade substancial, deve ser critério de definição de validade ou não, de legalidade ou não, dos contratos de terceirização.
Sob essa ótica, especificamente o artigo 42, itens 1, 2 e 3 do “Estatuto de los Trabajadores” espanhol, deveria servir de inspiração à legislação brasileira – e não apenas como mote para a implantação de uma reforma arrasadora e desumana à legislação trabalhista.
[1] Para Iamamoto, citando Harvey, o Capitalismo vigente do pós-guerra à década de 1970 se caracterizava pela produção em massa sob os auspícios das teorias fordista e toyotista, sendo garantido pela política Keynesiana, firmada no compromisso capital e trabalho, estruturada pela regulação do Estado. Na década de 1970 eclode uma das crises do capitalismo, devido à eclosão dos movimentos operários aliado à crise do petróleo, fez com que surgisse um novo paradigma de dominação e acumulação, caracterizado como “capitalismo flexível” (IAMAMOTO, Marilda V. O Serviço Social na Contemporaneidade: trabalho e formação profissional. 6. ed. São Paulo, Cortez, 2003).
[2] Nas palavras de DRATH, Rainer; HORCH, Alexander: “the first three industrial revolutions spanned almost 200 years. First, mechanical looms driven by steam engines in the 1780s started a significant change. Fabrics production left private homes in favor of central factories followed by an extreme increase in productivity. The second industrial revolution started about 100 years later in the slaughter houses in Cincinnati and found its climax with the production of the Ford T in the US.The basis for another productivity explosion were continuous production lines based on both division of labor and the introduction of conveyor belts. Thirdly, in 1969, Modicon presented the first programmable logic controller (PLC) that enabled digital programming of automation systems. The programming paradigm still governs today’s modern automation system engineering and lead to highly flexible and efficient automation systems” (DRATH, Rainer; HORCH, Alexander. Industrie 4.0 – hit or hype? In: IEEE Industrial Electronics Magazine. 01/2014; 8(2):56-58, 2014. Disponível em: https://www.researchgate.net/profile/Rainer-Drath/publication/263285662_Industrie_40_Hit_or_Hype_Industry_Forum/links/5909965e458515ebb495dde7/Industrie-40-Hit-or-Hype-Industry-Forum.pdf. p. 1. Acesso em 12 de setembro de 2023).
[3] Quarta Revolução Industrial, conforme definida por Klaus Schwab, é “a transição em direção a novos sistemas que foram construídos sobre a infraestrutura da revolução digital”, a saber, internet, inteligência artificial, novos materiais, robótica e biologia sintética, que impactam nas diversas esferas da sociedade, a saber, economia, o negócio, o governo, os países, a sociedade e os indivíduos, acarretando verdadeira mudança de paradigma. (SCHWAB, Klaus. A Quarta Revolução Industrial. São Paulo, Edipro, 2016, p. ).
[4] KLAUS SCHWAB em entrevista disponibilizada em https://www.bbc.com/portuguese/geral-37658309, consultada em 23 de setembro de 2023. Para aprofundamento do conceito e alcance da 4a Revolução Industrial: SCHWAB, Klaus. A Quarta Revolução Industrial. São Paulo, Edipro, 2016.
[5] Conforme Delaíde Alves de Miranda Arantes e Marília Cecília de Almeida Lemos, “As alterações aprovadas promovem uma flexibilização de direitos já experimentada por países como Inglaterra, Portugal, Espanha, Itália e México. O principal argumento dos defensores da reforma trabalhista é que a redução de direitos irá gerar mais empregos, pois o empresário será estimulado a contratar mais trabalhadores. No entanto, as evidências estatísticas e a história recente parecem desmentir essa alegação. Conforme reportagem veiculada no jornal Valor Econômico, na Espanha, por exemplo, depois da reforma de 2012, o desemprego recuou, mas o trabalho temporário – considerado mais precário que o contrato por tempo indeterminado – cresceu, enquanto a massa salarial caiu. O quadro em Portugal é semelhante, a não ser pela dinâmica dos salários, que cresceram em termos reais no ano passado pela primeira vez desde 2013. No México, as mudanças, que também completam cinco anos, não geraram os 400 mil empregos anuais esperados pelo governo; mas o trabalho independente, sem contrato direto com a empresa, também não aumentou” ( ARANTES, Delaíde Alves Miranda e LEMOS, Marília Cecília de Almeida. Reforma Trabalhitsa e previdenciária: reflexões sobre os impactos na sociedade brasileira. IN : TEIXEIRA, Marilane Oliveira et alii (org.) Contribuição Crítica à Reforma Trabalhista.Campinas, editora UNICAMP/SESIT, 2017. p. 130). Também no mesmo sentido: FABIANA, Isabela Márcia de Alcantara. Tutela dos Direitos Fundamentais na Espanha: uma inspiração para o Brasil. Revista LTr, São Paulo, v. 74, n. 1, 2010. p. 105-112.Disponível em: https://juslaboris.tst.jus.br/handle/20.500.12178/164811. Acesso em: 23 de setembro de 2023.
[6] GANZ, Clemente. Sociólogo explica Reforma Trabalhista na Espanha: “reverteu o que o Brasil implantou”. Revista Sul Brasil, 19 de setembro de 2022. Disponível em: https://sul21.com.br/noticias/geral/2022/09/sociologo-explica-reforma-trabalhista-na-espanha-reverteu-o-que-o-brasil-implementou/ Acesso em: 12 de setembro de 2023.
[7] Ibidem.
[8] Redação do artigo 42 do Estatuto dos Trabalhadores espanhol: “artículo 42. Subcontratación de obras y servicios. 1. Las empresas que contraten o subcontraten con otras la realización de obras o servicios correspondientes a la propia actividad de aquellas deberán comprobar que dichas contratistas están al corriente en el pago de las cuotas de la Seguridad Social. Al efecto, recabarán por escrito, con identificación de la empresa afectada, certificación negativa por descubiertos en la Tesorería General de la Seguridad Social, que deberá librar inexcusablemente dicha certificación en el término de treinta días improrrogables y en los términos que reglamentariamente se establezcan. Transcurrido este plazo, quedará exonerada de responsabilidad la empresa solicitante. 2. La empresa principal, salvo el transcurso del plazo antes señalado respecto a la Seguridad Social, y durante los tres años siguientes a la terminación de su encargo, responderá solidariamente de las obligaciones referidas a la Seguridad Social contraídas por los contratistas y subcontratistas durante el periodo de vigencia de la contrata. De las obligaciones de naturaleza salarial contraídas por las contratistas y subcontratistas con las personas trabajadoras a su servicio responderá solidariamente durante el año siguiente a la finalización del encargo. No habrá responsabilidad por los actos de la contratista cuando la actividad contratada se refiera exclusivamente a la construcción o reparación que pueda contratar una persona respecto de su vivienda, así como cuando el propietario o propietaria de la obra o industria no contrate su realización por razón de una actividad empresarial. 3. Las personas trabajadoras de la contratista o subcontratista deberán ser informadas por escrito por su empresa de la identidad de la empresa principal para la cual estén prestando servicios en cada momento. Dicha información deberá facilitarse antes del inicio de la respectiva prestación de servicios e incluirá el nombre o razón social de la empresa principal, su domicilio social y su número de identificación fiscal. Asimismo, la contratista o subcontratista deberán informar de la identidad de la empresa principal a la Tesorería General de la Seguridad Social en los términos que reglamentariamente se determinen”.
[9] Para Iamamoto, citando Harvey, o Capitalismo vigente do pós-guerra à década de 1970 se caracterizava pela produção em massa sob os auspícios das teorias fordista e toyotista, sendo garantido pela política Keynesiana, firmada no compromisso capital e trabalho, estruturada pela regulação do Estado. Na década de 1970 eclode uma das crises do capitalismo, devido à eclosão dos movimentos operários aliado à crise do petróleo, fez com que surgisse um novo paradigma de dominação e acumulação, caracterizado como “capitalismo flexível” (IAMAMOTO, Marilda V. O Serviço Social na Contemporaneidade: trabalho e formação profissional. 6. ed. São Paulo, Cortez, 2003).
REFERÊNCIAS
ARANTES, Delaíde Alves Miranda e LEMOS, Marília Cecília de Almeida. Reforma Trabalhitsa e previdenciária: reflexões sobre os impactos na sociedade brasileira. IN : TEIXEIRA, Marilane Oliveira et alii (org.) Contribuição Crítica à Reforma Trabalhista.Campinas, editora UNICAMP/SESIT, 2017.
DRATH, Rainer; HORCH, Alexander. Industrie 4.0 – hit or hype? In: IEEE Industrial Electronics Magazine. 01/2014; 8 (2): 56-58, 2014. Disponível em: https://www.researchgate.net/profile/Rainer-Drath/publication/263285662_Industrie_40_Hit_or_Hype_Industry_Forum/links/5909965e458515ebb495dde7/Industrie-40-Hit-or-Hype-Industry-Forum.pdf. p. 1. Acesso em 12 de setembro de 2023.
FABIANA, Isabela Márcia de Alcantara. Tutela dos Direitos Fundamentais na Espanha: uma inspiração para o Brasil. Revista LTr, São Paulo, v. 74, n. 1, 2010. Disponível em: https://juslaboris.tst.jus.br/handle/20.500.12178/164811. p. 105-112. Acesso em: 23 de setembro de 2023.
FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. Tradução de Ana Paula Zomer Sica, Fauzi Hassan Choukr, Juarez Tavares, Luiz Flávio Gomes. 3. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2010.
GANZ, Clemente. Sociólogo explica Reforma Trabalhista na Espanha: “reverteu o que o Brasil implantou”. Revista Sul Brasil, 19 de setembro de 2022. Disponível em: https://sul21.com.br/noticias/geral/2022/09/sociologo-explica-reforma-trabalhista-na-espanha-reverteu-o-que-o-brasil-implementou/ Acesso em: 12 de setembro de 2023.
IAMAMOTO, Marilda V. O Serviço Social na Contemporaneidade: trabalho e formação profissional. São Paulo, Cortez, 2003.
SCHWAB, Klaus. A Quarta Revolução Industrial. São Paulo, Edipro, 2016.
*Desirre Dorneles de Avila Bollmann possui graduação em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina (1992), mestre em Ciência Jurídica pela Universidade do Vale do Itajaí (2006). Além de juíza do trabalho - TRIBUNAL REGIONAL DO TRABALHO DA 12a REGIÃO, foi vice-diretora e coordenadora pedagógica da Escola Judicial do TRT 12, exercendo também a função de conselheira na coordenação técnico científica da ESCOLA JUDICIAL e de juíza gestora auxiliar do Programa Trabalho Seguro, ambos do TRIBUNAL REGIONAL DO TRABALHO DA 12ª. REGIAO. É atualmente docente do Curso de Pós-Graduação “Lato Sensu” em Direito do Trabalho e Preparação à Magistratura do Trabalho da AMATRA XII. Possui diversos artigos em publicações e é co-autora da obra "Reforma Trabalhista Comentada por Juízes do Trabalho artigo por artigo", publicada pela editora LTr.
**Marco Antônio César Villatore professor associado da UFSC na Graduação e na Pós-Graduação (Mestrado e Doutorado) em Direito, Coordenador de Pós-Graduação EAD pela Academia brasileira de Direito Constitucional, Titular da cadeira 73 da Academia brasileira de Direito do Trabalho.