Observatory on European Studies - CRISE MIGRATÓRIA E TJUE – com o Acórdão ADDE e outros (C-143/22) os juízes de Luxemburgo condenam as decisões de recusa de entrada de imigrantes irregulares nas fronteiras internas da União

2023-10-09

Naiara Posenato*

É notório que a questão migratória constitui um tema crucial para a União Europeia. Já a partir da chamada Primavera Árabe, sucessivamente com as ondas migratórias geradas pelo conflito bélico na Síria e nos últimos anos, com a instabilidade política crescente do norte da África, a crise migratória tem assumido proporções sempre maiores e mais desafiadoras para o sistema europeu.

Também é sabido que as debilidades da política comum europeia em tema de imigração e asilo derivam em grande parte das normativas que dividem de forma pouco équa os deveres dos Estados em matéria, como o Regulamento UE n. 604/2013 (Dublim III), que na prática atribui a competência para gerir demandas de asilo político ao Estado de primeiro ingresso. Este e outros elementos determinaram a divisão política entre um grupo formado por Estados que, pela própria posição geográfica, são os mais afetados pelas ondas migratórias (Europa meridional e oriental) que defende um dever de solidariedade entre os Estados-membros da UE com base no art. 80 do TFUE, e um grupo disposto a demonstrar menor solidariedade e exigir maior responsabilidade na atuação das regras europeias sobre imigração. Trata-se de um contexto difícil que ameaça a legitimação do projeto de integração europeia, abrindo espaço a tensões e novas tendências populistas e nacionalistas em detrimento de tal projeto.

Nas últimas semanas, uma nova grande onda de desembarques de imigrantes provenientes principalmente do norte da África na ilha de Lampedusa, Itália, tem gerado dificuldades em termos de salvamento, acolhida e acomodação dos imigrantes e novos desentendimentos entre as forças políticas italianas. 

O fenómeno também causou consequências internacionais: no âmbito da União europeia, no último dia 17 de setembro a Presidente do Conselho da UE, Ursula von der Leyen, juntamente com a Primeira-Ministra italiana Giorgia Meloni, visitou a ilha de Lampedusa, anunciando a adoção de um Plano de Ação a nível europeu com dez pontos para auxiliar a Itália, pressionada por várias rotas migratórias. Em sede multilateral, poucos dias atrás Giorgia Meloni também reclamou uma atuação concreta das Nações Unidas na guerra contra os traficantes de pessoas, durante próprio discurso diante da 78ª Assembleia Geral do Órgão.

Concretamente, porém, alguns Estados-membros, como a Alemanha, reagiram à emergência suspendendo o mecanismo europeu temporário de solidariedade que, com base voluntária, previa a realocação no próprio território de um número determinado de migrantes já registrados como requerentes de asilo no país do primeiro ingresso. Outros estados confinantes com a Itália, como a França, introduziram novamente controles nas fronteiras internas ao abrigo do Código das Fronteiras Schengen (art. 25 do Regulamento (UE) 2016/399), impedindo a entrada no próprio território de nacionais de países terceiros (Third-countries nationals - TCN) que já se encontravam em solo italiano de forma irregular.

Com um sentido de oportunidade perfeito, no dia 21 de setembro o Tribunal de Justiça da União europeia pronunciou o acórdão ADDE e outros (C-143/22) em sede de interpretação prejudicial da Diretiva 2008/115/CE relativa a normas e procedimentos comuns nos Estados-Membros para o regresso de nacionais de países terceiros em situação irregular (Diretiva Regresso). O processo nacional no âmbito do qual o pedido foi formulado foi instaurado por diversas associações francesas diante do Conselho de Estado daquele ordenamento, entre as quais a Association Avocats pour la défense des droits des étrangers (ADDE), que contestaram a Ordonnance n.° 2020-1733, de 16 de dezembro de 2020 que contém a parte legislativa da normativa francesa “Código da Entrada e da Permanência de Estrangeiros e do Direito de Asilo – Ceseda”. O artigo L. 332-3 do Ceseda, ao permitir às autoridades francesas recusar a entrada a nacionais de países terceiros na fronteira interna com outros Estados-Membros onde os controles foram temporariamente introduzidos ao abrigo do Código das Fronteiras Schengen por razões de ordem pública ou de segurança interna, infringiria a Diretiva Regresso. 

Segundo o próprio considerando n. 4, o objetivo da Diretiva Regresso é “estabelecer normas claras, transparentes e justas para uma política de regresso eficaz, enquanto elemento necessário de uma política de migração bem gerida”, em conformidade com o direito internacional e o respeito dos direitos humanos. Ainda, nos termos do art. 6 desta Diretiva, qualquer nacional de país terceiro em situação irregular deve, como regra, ser objeto de uma decisão de regresso. No entanto, em princípio a pessoa em causa dispõe de um determinado período de tempo para abandonar voluntariamente o país. O impedimento da entrada no país e a remoção forçada devem ser usados como último recurso.

Assim, o Conselho de Estado francês demandou ao Tribunal de Justiça se, quando um Estado-Membro decide reintroduzir temporariamente controles nas fronteiras internas, pode adotar uma decisão de recusa de entrada exclusivamente com base no Código das Fronteiras Schengen, sem ter que cumprir as normas e procedimentos comuns estabelecidos na Diretiva «Regresso», relativamente a um nacional de país terceiro que seja intercetado sem autorização de residência válida num ponto de passagem fronteiriço do seu território onde tais controlos estejam em vigor.

O Tribunal de Justiça, em resposta ao quesito formulado e considerando as Conclusões do Advogado-Geral Athanasios Rantos, de 30 de março de 2023, considerou que os Estados-Membros podem basear a própria decisão de recusar o ingresso de um nacional de país terceiro que tenha entrado ilegalmente no território de um Estado-Membro, e esteja presente nesse território sem preencher as condições de entrada, permanência ou residência, no Código das Fronteiras Schengen. No entanto, deve igualmente respeitar as normas e procedimentos comuns estabelecidos na Diretiva Regresso. E a Diretiva, como já anotado, obriga os Estados-Membros a adotarem uma decisão formal de regresso e a conceder um prazo para que o imigrante abandone voluntariamente o país.

“O facto de esta obrigação, que recai sobre o Estado-Membro em questão, ser suscetível de privar de grande parte da sua eficácia a eventual adoção de uma decisão de recusa de entrada relativamente a um nacional de um país terceiro que se apresente numa das suas fronteiras internas, não é suscetível de alterar tal constatação.” (§40 do Acórdão, última frase)

Somente em circunstâncias excecionais, observa o Tribunal de Justiça, os Estados-Membros podem excluir do âmbito de aplicação da diretiva os nacionais de países terceiros que permaneçam ilegalmente no seu território, por exemplo caso tenha sido recusada a entrada do estrangeiro na fronteira externa do Estado-Membro; no entanto, não se aplica quando a recusa ocorre na fronteira interna de um Estado-Membro.

Enfim, segundo a decisão, os Estados-Membros têm o direito de submeter a detenção um nacional de país terceiro enquanto se aguarda a remoção unicamente quando o mesmo representa uma ameaça para a ordem pública, seja suspeito ou tenha acertadamente cometido infrações que não dizem respeito apenas à entrada ilegal e sempre que a infração seja suscetível de ameaçar a ordem pública ou a segurança interna do Estado-Membro. 

Apesar das dificuldades concretas que tal decisão pode gerar para países normalmente menos afetados pela emergência migratória, é vista de forma positiva tanto no que concerne tanto a tutela dos direitos fundamentais das pessoas migrantes quanto como contribuição à construção de uma concreta solidariedade europeia, pressuposto para uma união política sólida.

*Naiara Posenato

Professora de Direito Comparado junto à Università degli Studi di Milano, Itália.