Observatory on European Studies - O direito à educação de crianças e de adolescentes migrantes, refugiados e apátridas: uma necessidade mundial e seus reflexos no Paraná e em Santa Catarina

2023-09-26

Marco Antônio César Villatore* e Rodrigo Almeida Martins**

O mundo, depois de tantos avanços tecnológicos, tanta fartura na produção de alimentos, tanta velocidade na transmissão de informações, bem como na expansão dos meios de transporte conectando vários pontos do globo por uma enormidade de pessoas, chegando em um futuro próximo à exploração comercial turística do espaço, está longe de garantir a segurança da totalidade da humanidade. Mesmo diante de tudo isso, fome, guerras, pandemias, crises econômicas, somando-se a desastres naturais de toda ordem têm imposto a mobilidade de grandes massas humanas ao longo dos continentes e das fronteiras nacionais.

Fluxos de refugiados e de migrantes têm atravessado fronteiras em busca de novas oportunidades e de um mínimo de dignidade que em seus países natais a realidade tem lhes negado. Daí que não basta acolher, há também a necessidade de “integrar” essas comunidades, bem como lhes garantir o mínimo daquilo que foram buscar ao deixar seus lares, isto é, urge lhes garantir “dignidade”.

Ocorre que, dignidade em um mundo que se afirma defensor da liberdade, impõe o desenvolvimento de níveis suficientes de autonomia, ou seja, permitindo a transposição das fronteiras nacionais, essas populações de migrantes e de refugiados que buscam pela esperança ao atravessar fronteiras de Estados estrangeiros devem ter a seu dispor os meios através dos quais sejam capazes de construir sua própria história em um país de estranhos e, quem sabe, com o tempo possam chamar essa nova terra de lar.

Na esteira da construção de sua própria identidade, o art. 23 da Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH) nos remete ao direito ao trabalho e efeitos conexos atrelados a uma relação trabalhista justa. Porém, correlato ao direito ao trabalho, há certamente a necessidade de garantir o direito à educação, tanto às pessoas adultas migrantes e refugiadas, mas, sobretudo, às crianças e aos adolescentes. Aliás, o direito à instrução é também um direito reconhecido internacionalmente, tal como estabelecido no art. 26 da DUDH.

Se as pessoas adultas migrantes e refugiadas devem ter alguma atenção quanto ao direito à educação, esse direito toma relevos maiores junto das crianças e dos adolescentes que atravessam sozinhos ou acompanhados as diversas fronteiras do mundo. Isso, tanto, pois ainda não completaram os seus respectivos processos de desenvolvimento pessoal nas diversas ordens (biológicas, afetiva, cognitiva, etc.), mas também por representarem um elemento de integração entre mundos. Ao ingressarem em uma nova realidade sem que tenham atingido a construção total de suas identidades, mas já repletos de uma historicidade maleável a novas experiências construtoras de suas respectivas subjetividades, essa construção de uma identidade mais ampla e transnacional pode se mostrar um objetivo de interesse tanto para os povos que pedem por acolhimento, quanto aos que acolhem. 

Com isso, não por acaso o art. 22 do Estatuto do Refugiado de 1951 previu o direito à educação básica, bem como o acesso a demais níveis de ensino e de vantagens possíveis a estrangeiros nos termos previstos na legislação nacional vigente. Assim, enquanto o número 1 desse artigo prevê os pressupostos mínimos para a integração, o seu número 2 garante a não discriminação dos migrantes e, principalmente, dos refugiados em contraposição a outros estrangeiros residentes. Tudo mais visando autonomia e integração, tal como estipulado pela ONU em 2016 na Declaração de Nova York para Refugiados e Migrantes, que entre os quatro objetivos principais, previu o aumento das condições de autossuficiência dos refugiados como algo a ser priorizado.

É importante tanto uma atenção especial às crianças e aos adolescentes migrantes e refugiados, bem como o acesso à educação básica – entre outras garantias, obviamente, sobejamente garantias de ordem de subsistência –, pois já em 2018 a UNICEF já mencionou que um terço dos refugiados e dos migrantes que ingressam na Europa são oriundos dessa faixa etária. Porém, a ACNUR em dados de junho de 2023 mencionou que 40% das pessoas deslocadas à força no mundo são de menores de 17 anos de idade. Aproximando-nos da realidade brasileira – particularmente na crise humanitária venezuelana reconhecida pelo governo brasileiro no início de 2018 por meio do Decreto nº. 9.285/2018 –, a ACNUR, por intermédio do Global Trends, nos informou em julho de 2023 que 70% das solicitações de asilo realizadas em 2022 eram de mulheres e que, acompanhadas ou sozinhas, 36,9% dos pedidos de asilo eram de crianças e de adolescentes. Daí que se faz imprescindível a criação de políticas públicas inclusivas, onde não basta a assistência imediata, mas também a garantia de integração à nova comunidade e o desenvolvimento da autonomia como exposto. 

No cenário europeu o plano de integração e inclusão para o período de 2021 a 2027 estabelecido pela União europeia coloca como seus alicerces à educação e a formação tendo como fundamento a educação e o acolhimento desde a infância até o ensino superior, com o fito de edificar uma sociedade inclusiva. Nesse sentido, dispõe o referido plano que:

as escolas têm potencial para ser verdadeiros centros de integração para as crianças e as suas famílias. O aumento da participação das crianças migrantes e das crianças com antecedentes migratórios na educação e no acolhimento na primeira infância, velando em simultâneo por que esses programas estejam aptos a receber crianças de meios culturais e linguísticos variados, pode ter um forte efeito positivo no seu futuro sucesso escolar, nomeadamente na aprendizagem da língua do país de acolhimento e na integração dos pais e das famílias em geral. (2020, disponível em: https://eur-lex.europa.eu/legal-content/PT/TXT/?uri=CELEX%3A52020DC0758&qid=1632299185798, acessado em 14 de agosto de 2023, p. 9).

Alinhando-se com esses mesmos ideais, tanto pelo alto fluxo migratório de refugiados e de migrantes venezuelanos, cujo marco de 100 mil interiorizações realizadas pela Operação Acolhida foi alcançado em 30 de março de 2023, com números atualizados em junho de 2023 para 107.299 venezuelanos que foram interiorizados no Brasil, impondo-se o estabelecimento de políticas públicas junto a essas populações. Obviamente em complemento às disposições já vigentes aos estrangeiros residentes nos termos previstos na Lei nº. 13.445/2017 ao prever: o direito à inclusão igualitária no inciso XI, do art. 3º.; a educação pública no inciso X, art. 4º.; e o desenvolvimento da autonomia e promoção da dignidade nos termos do inciso II, art. 77.

Assim, no que tange a garantia de acesso à educação dos refugiados, a Resolução nº. 1, de 13 de novembro de 2020, do Ministério da Educação criou o alicerce regulatório mínimo, impondo no § 1º. do art. 1º. o direito ao ingresso imediato no sistema de ensino local, bem como referenciando em seguida no § 2º. a proibição de qualquer discriminação. Além de, diante da situação de vulnerabilidade social, impor através do § 4º. a necessidade de criação de instrumentos de facilitação no ingresso e manutenção no sistema de ensino às crianças e aos adolescentes refugiados e migrantes. Medidas essas que, entre outras previstas, deveriam ser complementadas pelas iniciativas locais dos diversos municípios e Estados, responsáveis respectivamente pelas redes de ensino infantil e fundamental (municípios) e médio (Estados).

Entre os Estados que merecem atenção, temos Paraná e Santa Catarina. O primeiro, por exemplo, por ser o segundo maior acolhedor de venezuelanos através da Operação Acolhida, além de também ser o maior acolhedor de ucranianos refugiados da guerra que se prolonga a mais de 1 ano; enquanto o segundo – já historicamente edificado por populações migrantes europeias (alemães, italianos, açorianos, poloneses, etc.) – é na atualidade o maior acolhedor de venezuelanos pelo programa coordenado pelo executivo federal com seus inúmeros parceiros. Daí não ser estranho a existência de regulamentações estatuais criando e garantindo instrumentos de inclusão dessas comunidades através da educação.

Assim, junto do primeiro Estado da federação mencionado está em vigência o II Plano Estadual de Políticas Públicas para a Promoção e Defesa dos Direitos dos Migrantes, Refugiados e Apátridas do Paraná para o período de 2022 a 2025. Nos seis eixos para a construção de políticas públicas, o primeiro eixo se refere à educação, e é composto por 15 ações a se estabelecer. As quatro primeiras versam sobre a integração linguística, tanto dos migrantes à língua local, quanto dos profissionais locais em terem acesso à língua que os migrantes trazem para o território paranaense. Prevendo também que devem ser viabilizados cursos nas línguas estrangeiras aos brasileiros, observando a presença no Estado, a fim de ampliar a integração entre a cultura estrangeira e autóctone. Há também remissão a ações para inserção, reingresso e continuidade de estudantes refugiados nos programas de graduação e pós-graduação, além de programas e exames específicos de “vestibular” para auxiliar nesse processo. Prevendo, inclusive, a existência de deverem ser disponibilizadas bolsas de estudos a esse universo de estudantes, entre outras medidas a serem implementadas ao longo do período de vigência do plano.

Por sua vez, no território catarinense fazemos remissão a uma ação concreta estabelecida pela Portaria nº. 2.083, de 31 de julho de 2023, da Secretaria de Estado da Educação, estabelecida para regular os procedimentos relativos à matrícula, aproveitamento de estudos realizados no exterior e transferência para o exterior de alunos da Rede Estadual de Ensino, de estudantes migrantes, refugiados e apátridas. Com isso, regula os procedimentos para a efetiva inclusão desses estudantes às unidades de ensino, com a remissão de documentos e procedimentos a serem realizados na ausência dos mesmos. Estabelecendo, ainda, procedimentos para estreitar a distância linguística que acompanha essas comunidades ao ingressarem no território catarinense.

Enfim, não se inclui e não se integra sem educação. Porém, há necessidade de se pensar uma educação diferenciada diante das particularidades que se manifestam. Que longe de representarem um custo são, na verdade, ferramentas para o enriquecimento cultural daqueles que acolhem.

 

*Marco Antônio César Villatore Advogado, Mestre, Doutor e Pós-Doutor em Direito, Professor da Graduação e da Pós-Graduação em Direito (Mestrado e Doutorado) da UFSC, Ex-Presidente e Membro Relator da Comissão de Direito Internacional da OAB/PR.

**Rodrigo Almeida Martins Oficial do Exército brasileiro do Quadro Complementar de Oficiais da especialidade em Direito, Mestre e Doutor em Filosofia pela UFSC, atualmente é Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Direito da UFSC.