Observatory on European Studies - O diálogo entre a União Europeia e o Brasil na regulação dos serviços digitais

2023-09-18

Aline Beltrame de Moura* e Victoria Fernandes de Moraes**

Há um histórico de troca de experiências entre o Brasil e a União Europeia (UE) no que diz respeito à legislação, tendo em vista, por exemplo, a influência do Regulamento Geral de Proteção de Dados da União Europeia (RGPD)[1] na Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD)[2]. Ainda que essa regulamentação seja relativamente recente, a esfera digital vem sofrendo transformações a todo instante, o que faz com que os legisladores na atualidade busquem frequentemente aperfeiçoar os métodos de regular o espaço virtual e garantir os direitos fundamentais dos usuários nesse espaço. 

Nessa perspectiva, no ano de 2022, a proteção de dados pessoais foi consagrada como um direito fundamental no Brasil, por meio da aprovação da Emenda Constitucional n. 115[3]. No mesmo ano, a União Europeia aprovava o Regulamento dos Serviços Digitais (DSA, no acrónimo em inglês)[4] e o Regulamento dos Mercados Digitais (DMA)[5] com o objetivo de estabelecer regras claras para a prestação de serviços digitais e para o funcionamento do mercado digital no continente europeu, disciplinando o poder das grandes plataformas de tecnologia.

Com a criação do DSA e do DMA, a União Europeia se tornou a primeira jurisdição a submeter as Big Techs, tais como Google, Apple, Amazon, Microsoft e Meta (Facebook, Instagram e Whatsapp), a um amplo conceito regulatório. Os usuários passaram a gozar de mais liberdade para denunciar o conteúdo através de um mecanismo de alerta e se tornaram obrigatórias auditorias externas independentes, realizadas anualmente. Além disso, passou a haver avaliações de risco sistêmico, também anuais, que visam compreender de que forma o funcionamento, os conteúdos e o ambiente da plataforma geram riscos sociais, econômicos e políticos. 

Paralelamente aos desdobramentos recentes da regulação europeia no setor digital, os legisladores brasileiros também iniciaram o debate para que um modelo similar de regras e princípios relacionados aos serviços digitais pudesse vir a  ser implementado no Brasil. O Projeto de Lei (PL) n. 2.630/2020[6], de autoria do senador Alessandro Vieira (Cidadania-SE), busca instituir a Lei Brasileira de Liberdade, Responsabilidade e Transparência na Internet. O projeto, que ficou popularmente conhecido como ‘PL das Fake News’, propõe regras para aumentar a transparência das plataformas digitais, fortalecer a democracia e combater a disseminação de conteúdo falso nas redes sociais, como Facebook e Twitter, e nos serviços de mensagens privadas, como WhatsApp e Telegram[7][8]. A proposta, se aprovada, valerá para as plataformas com mais de 2 milhões de usuários, inclusive estrangeiras, desde que ofereçam serviços ao público brasileiro[9].

Nessa temática, compreendendo a relevância do fomento de formas de cooperação e de boas práticas entre a União Europeia e o Brasil, foi realizado junto à Comissão de Ciência, Tecnologia e Inovação da Câmara dos Deputados, o Seminário "Ciclo de Diálogo com a União Europeia/Brasil - sobre Prioridades Legislativas - Regulação de Serviços Digitais: Lições Aprendidas na União Europeia"[10] em 31 de maio de 2023. O Seminário contou com a presença de Ana Beatriz Martins, Ministra Conselheira da Delegação da União Europeia no Brasil, de Ricardo Castanheira, Consultor Especialista do Projeto Diálogos União Europeia/Brasil e de diversos parlamentares brasileiros.

Do debate extrai-se que os modelos legislativos da União Europeia e do Brasil, para além de muito diferentes, possuem antecedentes igualmente próprios, uma vez que, por exemplo, muitos coeficientes anteriores à criação do DSA na Europa facilitaram a sua criação, influenciando-o e aprimorando-o. Isso é destacado a fim de que seja compreendido que é preciso implementar um modelo no Brasil reconhecendo o contexto e as particularidades deste país.

Para além do DSA em si, existem algumas outras iniciativas, aprovadas pela União Europeia, que podem auxiliar na reflexão sobre modelos regulatórios que possam vir a orientar os legisladores brasileiros nessa seara. Um exemplo disso é a Declaração Europeia sobre os Direitos e Princípios Digitais[11], assinada no ano de 2022, que visa proceder a uma transformação digital inclusiva, justa, segura e sustentável que dê prioridade às pessoas e respeite os direitos fundamentais. Os direitos e princípios propostos incluem dar prioridade às pessoas e aos seus direitos no âmbito da transformação digital; apoiar a solidariedade e a inclusão; garantir a liberdade de escolha em linha; promover a participação no espaço público digital; aumentar a segurança, a proteção e a capacitação das pessoas; e promover a sustentabilidade do futuro digital.

No mais, a colaboração das grandes empresas de tecnologias mostra-se como um fator determinante para o bom andamento da regulamentação do setor. A subscrição por grande parte das Big Techs ao Código de Conduta sobre Desinformação[12], antes mesmo da entrada em vigor da regulamentação europeia dos serviços digitais, demonstra a relevância de um diálogo constante entre o setor público e o privado com vistas a garantir um futuro digital no qual os valores e direitos fundamentais sejam protegidos. 

Após a entrada em vigor do DSA, em 16 de novembro de 2022, as plataformas online dispunham de três meses para comunicar o número de utilizadores finais ativos nos seus sítios Web[13]. Dessa forma, com base nos números apresentados, a Comissão Europeia, em 25 de abril de 2023, pôde designar plataformas online de grande dimensão (dentre elas, Booking.com, TikTok, LinkedIn, Google Play, Google Maps e Google Shopping) e motores de pesquisa online de grande dimensão (como Bing e Google Search)[14]. Após essa indicação, as entidades dispuseram de quatro meses, até o dia 25 de agosto de 2023, para cumprir as obrigações decorrentes do DSA. Muitas das Big Techs, como o Google, anunciaram as adaptações realizadas em suas plataformas ao previsto no DSA. A partir do dia 17 de fevereiro de 2024 o DSA será plenamente aplicável a todas as entidades abrangidas pelo seu âmbito de aplicação.

Por sua vez, a regulação dos serviços digitais ainda precisa ser consolidada no Brasil. Enquanto aguarda-se a apreciação do PL n. 2.630/2020 (PL das Fake News) pela Câmara dos Deputados, tramitação que corre em regime de urgência, importante mencionar que foi publicada, em 12 de abril de 2023, a Portaria n. 351/2023 do Ministério de Estado da Justiça e Segurança Pública que dispõe sobre medidas administrativas a serem adotadas no âmbito deste Ministério, para fins de prevenção à disseminação de conteúdos flagrantemente ilícitos, prejudiciais ou danosos por plataformas de redes sociais.

Além disso, destaca-se que também pendem de julgamento os Temas 533 e 987 (Repercussão Geral) junto ao Supremo Tribunal Federal (STF)[15]. Em síntese, a corte constitucional brasileira deverá decidir sobre os limites da aplicação do artigo 19 do Marco Civil da Internet (Lei n. 12.965/2014)[16], que define os parâmetros da responsabilidade civil dos provedores de aplicações por conteúdos gerados por terceiros, no caso, seus usuários.

Um amplo diálogo com as empresas de tecnologia, com os usuários dos servicos digitais e com a academia mostra-se fundamental para buscar-se soluções eficientes e adequadas ao dinamismo do setor. Neste contexto, a cooperação e a troca de boas práticas com outros atores que já se encontram em uma fase mais avançada de regulação dos serviços e dos mercado digitais, como a União Europeia, certamente auxiliará na elaboração e consolidação de uma legislação nacional apropriada e coerente com o contexto brasileiro. 

 

[1] União Europeia, Regulamento (UE) 2016/679 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 27 de abril de 2016, relativo à proteção das pessoas singulares no que diz respeito ao tratamento de dados pessoais e à livre circulação desses dados e que revoga a Diretiva 95/46/CE (Regulamento Geral sobre a Proteção de Dados), Jornal Oficial da União Europeia, 4 maio 2016. Disponível em: https://eur-lex.europa.eu/legal-content/pt/TXT/?qid=1559291025147&uri=CELEX:32016R0679#d1e1564-1-1.

[2] Brasil. Lei nº 13.709, de 14 de agosto de 2018. Dispõe sobre a proteção de dados pessoais e altera a Lei nº 12.965, de 23 de abril de 2014 (Marco Civil da Internet). Brasília, DF: Presidência da República; 2018. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2018/lei/L13709.htm.

[3] BRASIL. CONSTITUIÇÃO (1988). Emenda Constitucional nº n° 115, de 10 de fevereiro de 2022. Altera a Constituição Federal para incluir a proteção de dados pessoais entre os direitos e garantias fundamentais e para fixar a competência privativa da União para legislar sobre proteção e tratamento de dados pessoais. [S. l.], 10 fev. 2022. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/Emendas/Emc/emc115.htm. 

[4] Regulamento (UE) 2022/2065 do Parlamento Europeu e do Conselho de 19 de outubro de 2022 relativo a um mercado único para os serviços digitais e que altera a Diretiva 2000/31/CE (Regulamento dos Serviços Digitais).

[5] REGULAMENTO (UE) 2022/1925 DO PARLAMENTO EUROPEU E DO CONSELHO de 14 de setembro de 2022 relativo à disputabilidade e equidade dos mercados no setor digital e que altera as Diretivas (UE) 2019/1937 e (UE) 2020/1828 (Regulamento dos Mercados Digitais).

[6] SENADO FEDERAL. Projeto de Lei nº PL 2630/2020. Institui a Lei Brasileira de Liberdade, Responsabilidade e Transparência na Internet. [S. l.], 2020. Disponível em: https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/141944. Atualmente o PL encontra-se em tramitação, em regime de urgência, na Câmara dos Deputados.

[7] PINOTTI, Fernanda. Lei europeia que inspira PL das Fake News foca na transparência, não no conteúdo; entenda. CNN BRASIL, [s. l.], 14 maio 2023. Disponível em: https://www.cnnbrasil.com.br/politica/lei-europeia-que-inspira-pl-das-fake-news-foca-na-transparencia-nao-no-conteudo-entenda/.

[8] ENTENDA o que é o PL das Fake News e por que tem gerado polêmicas no Brasil. Unifor, [s. l.], 22 maio 2023. Disponível em: https://encurtador.com.br/dILX8. 

[9] AGÊNCIA CÂMARA DE NOTÍCIAS. 2020. Projeto do Senado de combate a notícias falsas chega à Câmara Fonte: Agência Câmara de Notícias, [S. l.], 3 jul. 2020. Disponível em: https://www.camara.leg.br/noticias/673694-projeto-do-senado-de-combate-a-noticias-falsas-chega-a-camara/. 

[10] MARTINS, Ana Beatriz; CASTANHEIRA, Ricardo. Ciclo de Diálogo com a União Europeia / Brasil - Ciência, Tecnologia e Inovação. [Câmara dos Deputados]. 31/05/2023. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=YcfPWEwy5E0&list=PPSV>.

[11] Declaração Europeia sobre os direitos e princípios digitais para a década digital. COM(2022) 28 final, Bruxelas, 26.1.2022. Disponível em: https://eur-lex.europa.eu/legal-content/PT/TXT/?uri=CELEX:52022DC0028. 

[12] COMISSÃO EUROPEIA. 16 junho 2022. 2022 reforço do Código de Conduta sobre Desinformação, [S. l.], 16 jun. 2022. Disponível em: https://digital-strategy.ec.europa.eu/pt/library/2022-strengthened-code-practice-disinformation.

[13] COMISSÃO EUROPEIA. 2022. Regulamento Serviços Digitais: garantir um ambiente em linha seguro e responsável, [S. l.], 2022. Disponível em: https://commission.europa.eu/strategy-and-policy/priorities-2019-2024/europe-fit-digital-age/digital-services-act-ensuring-safe-and-accountable-online-environment_pt#documentos. 

[14] COMISSÃO EUROPEIA. 25 abril 2023. Regulamento Serviços Digitais: Comissão designa primeiro conjunto de plataformas em linha e motores de pesquisa em linha de muito grande dimensão, [S. l.], 25 abr. 2023. Disponível em: https://ec.europa.eu/commission/presscorner/detail/pt/ip_23_2413.

[15] STF, Recursos Extraordinários 1.037.396 e 1.057.258 – Temas 533 e 987, Repercussão Geral.

[16] Lei n. 12.965, de 23 de abril e 2014 que estabelece princípios, garantias, direitos e deveres para o uso da Internet no Brasil.

 

*Aline Beltrame de Moura

Professora da Universidade Federal de Santa Catarina

Coordenadora do Jean Monnet  BRIDGE Project

** Victoria Fernandes de Moraes

Graduanda em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina 

Integrante do projeto de extensão Latin American Center of European Studies (LACES).