Observatory on European Studies - Primeira decisão do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem sobre uso da inteligência artificial (AI) condena Rússia

2023-09-11

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Naiara Posenato*

O Estado foi condenado por violação do direito à liberdade de expressão e do direito ao respeito pela vida privada e familiar

 

Em 4 de julho último, a Terceira Seção do Tribunal Europeu de Direitos do Homem adotou uma decisão inédita sobre a compatibilidade dos sistemas de inteligência artificial para a identificação biométrica remota (em inglês Facial Recognition Technology - FRT) com os direitos tutelados pelo sistema convencional. Conforme a decisão do caso Glukhin v. Rússia (Application no. 11519/20), adotada de forma unânime, a utilização de tecnologia de reconhecimento facial pelas autoridades russas em manifestações violou os direitos de um manifestante em Moscou, em especial o artigo 8º (Direito ao respeito pela vida privada e familiar) e o artigo 10º (liberdade de expressão) da Convenção Europeia dos Direitos do Homem.

Embora a Facial Recognition Technology seja amplamente utilizada na Europa, há pouco material jurisprudencial nos sistemas jurídicos nacionais sobre a sua correta utilização e os limites aos quais deve ser submetida. Ao mesmo tempo, os standards internacionais sobre as chamadas “tecnologias biométricas”, ou seja, que utilizam dados pessoais altamente sensíveis, já revestem um volume considerável, e alguns destes foram especificamente relevantes para a decisão nesta sede brevemente comentada.

 

O recurso, os fatos

Tratou-se de um recurso apresentado pelo cidadão russo Nikolay Sergeyevich Glukhin contra a Federação Russa em conformidade ao art. 34 da Convenção contestando a condenação administrativa do recorrente, em 2019, por violação da Lei sobre eventos públicos (n. FZ, de 19 de junho de 2004). O Recorrente afirmava que tal condenação viola e a utilização da Tecnologia de Reconhecimento Facial violariam o seu Direito ao respeito pela vida privada e familiar e à liberdade de expressão.

No dia 23 de agosto de 2019, Glukhin deslocara-se em Moscou, utilizando o metrô, com uma silhueta em papelão de tamanho natural representando um ativista político russo, Konstantin Kotov, que segurava uma faixa com a seguinte frase: “Vocês estão brincando comigo. Eu sou Konstantin Kotov e estou arriscando até cinco anos (de prisão) pelo artigo 212.1 por protestar pacificamente”. Fotografias deste protesto individual e pacífico foram tiradas das redes sociais, adicionadas a um banco de dados da polícia e as imagens foram utilizadas em conjunto com imagens de vigilância FRT do metrô da capital russa para identificar o requerente como o homem que organizou o protesto. Sucessivamente, através da utilização da chamada Live Facial Recognition Technology foi localizado o paradeiro do requerente, a fim de o prender.

Entre 2017 e 2022, mais de 220.000 câmeras foram instaladas em Moscou, inclusive no sistema de metrô da cidade, após a entrada em vigor de um decreto sobre segurança dos transportes (Decreto 410 de 5 de abril de 2017). Todas estão equipadas com tecnologia de reconhecimento facial ao vivo.

 

A posição do Tribunal

Na decisão, o Tribunal europeu estabeleceu em primeiro lugar a própria competência para conhecer do caso, uma vez que os fatos que deram origem às alegadas violações da Convenção ocorreram antes de 16 de setembro de 2022, data em que a Rússia deixou de ser Parte na Convenção Europeia. 

Uma parte importante da analise é dedicada ao “Material Internacional Relevante”, onde o Órgão faz uma resenha das (soft) normas adotadas pelas Nações Unidas (Informe del Alto Comisionado de las Naciones Unidas para los Derechos Humanos A/HRC/44/24, de 24 de junho de 2020, “Impacto de las nuevas tecnologías en la promoción y protección de los derechos humanos en el contexto de las reuniones, incluidas las protestas pacíficas”), do Conselho da Europa (entre elas as “Guidelines on Facial Recognition”, Convention 108 on Data Protection, de 28 de janeiro de 2021), e da União Europeia (Diretiva UE 2016/680 do Parlamento europeu e do Conselho de 27 de abril de 2016 relativa à proteção das pessoas singulares no que diz respeito ao tratamento de dados pessoais, le Guidelines 05/2022 on the use of facial recognition technology in the area of law enforcement, do European Data Protection Board, e a Carta europeia dos direitos fundamentais, em especial os arts. 7, 8, 11 e 12, que tutelam respectivamente o respeito pela vida privada e familiar, a proteção dos dados pessoais, a liberdade de expressão e informação e a liberdade de expressão e de informação. 

Com relação à suposta violação do art. 10 da CEDH, o Tribunal afirma inicialmente que a proteção garantida por tal disposição à liberdade de expressão do pensamento não se limita à palavra falada ou escrita, uma vez que as ideias e opiniões também podem ser comunicadas por meios de expressão não-verbais ou através do comportamento de uma pessoa; portanto, o acompanhamento do Requerente à delegacia de polícia, a prisão administrativa e a condenação por ilícito administrativo constituem uma interferência no seu direito à liberdade de expressão.

Tal interferência não pode ser considerada legítima, em conformidade ao art. 10, § 2 da CEDH, pois embora expressamente prevista em lei e endereçada a tutelar os objetivos legítimos de “prevenção da desordem” e “proteção dos direitos de outros”, não era “necessário numa sociedade democrática”. De fato, afirma o Tribunal de Estrasburgo, a manifestação ocorreu de forma inquestionavelmente pacífica e não perturbadora da ordem social; o crime pelo qual foi condenado consistiu simplesmente na não notificação às autoridades da sua manifestação solitária e não incluiu qualquer outro elemento incriminatório relativo a qualquer ato repreensível, como obstrução ao trânsito, danos materiais ou atos de violência. Não foi demonstrado que as ações do requerente causaram uma perturbação grave à vida quotidiana e a outras atividades em maior extensão do que era normal ou inevitável nas circunstâncias. Também não foi alegado que as suas ações representassem um perigo para a ordem pública ou a segurança dos transportes. Contudo, as autoridades não demonstraram o grau de tolerância necessário para com a manifestação pacífica individual do requerente.

O art. 8 CEDH, relativo à proteção da vida privada e familiar, é o mais impactado pela utilização da tecnologia FRT, pois envolve o armazenamento e tratamento de dados pessoais do requerente, nomeadamente dos seus dados biométricos para fins como identificação. Ao mesmo tempo, afirma, o direito de cada pessoa à proteção da sua imagem é um dos componentes essenciais do desenvolvimento pessoal e pressupõe o direito de controlar o uso dessa imagem. Também no caso desta norma, qualquer interferência deve ser justificada e o direito nacional deve fornecer garantias adequadas a impedir qualquer uso dos dados pessoais incompatíveis com a proteção da vida privada e familiar.

Segundo o Tribunal, a necessidade de tais salvaguardas é ainda maior quando se trata de proteger dados pessoais submetidos a tratamento automatizado, sobretudo quando esses dados são utilizados para fins de aplicação da lei e a tecnologia disponível torna-se cada vez mais sofisticada. Conclui asserindo que a proteção oferecida pelo Artigo 8 da Convenção seria inaceitavelmente enfraquecida se o uso de técnicas científicas modernas no sistema de justiça criminal fosse permitido a qualquer custo e sem equilibrar cuidadosamente os benefícios potenciais do uso extensivo de tais técnicas com importantes interesses de privacidade.

A pontualidade da presente decisão, diante do pioneiro processo europeu de regulamentação da AI, é evidente, assim como a leitura que parece ser comum entre o sistema europeu e da União europeia de grande prudência diante da adoção de determinadas tecnologias. 

 

Ver também:

Observatory on European Studies _ UE pioneira da regulamentação da Inteligência Artificial 

Observatory on European Studies - A Federação Russa perde o status de Estado-parte da Convenção europeia dos Direitos do Homem 

* Naiara Posenato

Professora agregada de Direito Comparado junto à Università degli Studi di Milano, Itália.