Observatory on European Studies - A figura do agente de execução português e a função proposta aos tabeliães pela PL nº 6.204/2019 no Brasil

2023-08-07

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Gustavo Kuerten*

O povo brasileiro tem a cultura litigiosa o que promove um inchaço processual, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), anualmente apresenta relatórios nominado “Justiça em números”[1]. Em 2021, demonstrou dado alarmante, ao Poder Judiciário brasileiro, foram apresentados cerca de 19 milhões novos casos para apreciação.

Aliado ao lado litigioso, vemos que há baixo índice na resolução, e, ainda, uma alta inadimplência dos vencidos, promovendo o que o próprio CNJ denomina “Gargalos da Execução”.

Para melhor ilustrar, o Poder Judiciário contava com um acervo de 77 milhões de processos pendentes de baixa no final do ano de 2021, sendo mais da metade desses processos (53,3%) em fase de execução.

Mesmo afastando a ideia de país litigante, ou, deixando de tecer qualquer crítica a qualidade da prestação judicial, a execução é de fato o maior fator para inércia de processos em gabinete, em 2020, o tempo médio das execuções civis na Justiça Estadual, correspondeu a 6 anos e 9 meses.

A questão fundamental do acesso à justiça, como a entrega do objeto da ação, fica subtraída na medida que novos processos se formam sem a resolução dos anteriores, exemplificando, o novo relatório demonstrou que os casos pendentes na fase de execução apresentaram uma clara tendência de crescimento do estoque entre os anos de 2009 e 2017 e permaneceram quase que estáveis até 2021.

Claro, a proposta de processo sincrético, trazida pelo Código de Processo Civil Brasileiro de 2015 (Lei nº 13.105/2015), apresentou – via de regra – maior celeridade processual, e abrangência na tutela executiva. Porém, como visto, a demanda executiva permanece como o “calcanhar de Aquiles” brasileiro, visto o estoque apresentado no relatório, que remontam a épocas entre 2009 e 2017.

Nesta seara, há dúvidas quanto a possibilidade de uma resposta crível para despachar tantos processos sem êxito – aqui se refere como êxito a entrega do objeto perseguido, e não apenas a prestação jurisdicional exposta em sentença. Impossibilitar novos casos não nos parece uma saída possível, pois, a ineficácia jurisdicional não pode construir barreiras para acesso à justiça.

Nesse mesmo diapasão, com claro intuito de desafogar o judiciário, em outros seguimentos o direito brasileiro passou a promover a desjudicialização de procedimentos, podemos citar como exemplo, a possibilidade de inventário, divórcio e usucapião extrajudicial.

Importa destacar, que a desjudicialização da usucapião inclusive é exposta no próprio código processualista brasileiro, passando a constar expressamente na redação do art. 1.071 o procedimento extrajudicial.

Fato é, que embora adotado o caráter de desjudicialização de procedimentos, o legislador brasileiro, parece esquecer do principal gargalo no judiciário, deixando as execuções ainda sob o pátrio poder do estado-juiz.

O próprio direito brasileiro, é extremamente influenciado por técnicas aportadas de outros continentes. E olhando para este lado busca-se respostas para solução da inércia no estoque de processos em outros países, tal qual Portugal.

Na escola portuguesa, por meio do Decreto-Lei nº 38/2003, foi introduzida uma forma de desjudiciliazação dos meios de execução, fundando a figura dos Agentes de Execução.

Portanto, deslocou-se a um profissional liberal, mas com função pública, o desempenho de um conjunto de tarefas antes exercidas pelo tribunal, em caráter eminentemente executivo.

Por óbvio que a desjudiciliazição não é um simples processo, de pronto não é visível seus benefícios em virtude da implementação, inclusive, em Portugal, o processo foi árduo e extenuante, necessitando diversas vezes ao legislativo para contornar as insuficiências que o processo apresentava.

O processo executivo desjudicializado, somente veio a tomar força com a Lei nº 18/2008 e pelo Decreto-lei nº 226/2008, dos quais, pautaram-se em simplificar e desburocratizar, as execuções, além de aumentar o número de agentes de execução. Além disto, criou-se uma lista on-line para controle de execuções frustradas.

Neste passo, Paula Meira Lourenço[2], apresenta dados estatísticos disponibilizados pelo Ministério da Justiça, que reproduzem os avanços que a desjudicialização do processo executivo português trouxe em matéria de efetividade.

Houve maior evasão de processos em relação ingressados, em 2014, havia 1.014.026 execuções pendentes; em 2015, 938.748; em 2016, 804.565; em 2017, 700.523; em 2018, 604.980, representando reduções de praticamente 100.000 execuções pendentes ano a ano.  Em 2018, das 213.004 ações executivas findas, 41% foram extintas com êxito, por pagamento total ou parcial. 

A título de exemplo, os números representam mais que o dobro da taxa de efetividade brasileira, que é de 12,1% nas execuções de título extrajudicial não fiscal, e mesmo referente aos títulos judiciais, a taxa de efetividade não é animadora, apresentando 27,5% de efetividade, conforme os dados apresentados pelo “Justiça em Números” do CNJ no ano de 2022.

Os dados evidenciam um aumento progressivo da efetividade na desjudicialização da execução portuguesa. No entanto, a sistemática adotada por Portugal enfrenta desafios no contexto brasileiro, inclusive incertezas quanto à sua compatibilidade com a Constituição Brasileira.

Isto porque, a Constituição portuguesa é mais clara em relação à distinção do acesso ao direito, e, aos tribunais, em seu art. 20, 1, há referência: “A todos é assegurado o acesso ao direito e aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos, não podendo a justiça ser denegada por insuficiência de meios económicos.”, a separação das expressões não gera conflito entre ideias.

Enquanto no Brasil, a ideia ligada de acesso à justiça remonta a apreciação do judiciário, claro, muito influenciada pelo art. 5º, XXXV da Constituição Federal, ao prever que a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito.

Na tentativa de não causar tanto espanto, e aproximar a desjudicialização da execução à Constituição Federal Brasileira, o PL nº 6.204/2019[3], que ainda se encontra em tramitação, dispõe sobre a desjudicialização da execução civil de título executivo judicial e extrajudicial, delegando o exercício da atividade a um profissional de direito devidamente concursado, neste caso, o tabelião de protesto.

Neste passo, a delegação já é prevista no art. 236 da Constituição Federal, deixando a atividade, embora privativa, sob a esfera estatal. O que diferencia dos agentes executivos portugueses, profissionais liberais, mas com funções públicas.

De maneira simples, a proposta somente direciona a responsabilidade das execuções a outro ente do próprio Estado, mantendo as responsabilidades de suas atividades, porém delegando a outro órgão, no intuito de desafogar um ente estatal, com a participação de outro que tem temática semelhante, e fiscalização das atividades pelo Poder Judiciário, por meio das corregedorias dos Tribunais de Justiça.

Ainda, apresenta a título de remuneração destes tabeliães, uma sistemática semelhante a exercida atualmente, atos serão realizados mediante pagamento de emolumentos fixados por lei, cobrados do devedor ao final do procedimento executivo, tal como realizado hoje no protesto de títulos.

Inegável que a proposta levante dúvidas, principalmente quanto a estrutura física apta a dar efetividade também para a execução, ou a análise do título como verificação dos pressupostos da execução também seria delegada, a disponibilidade dos sistemas de localização de endereço do devedor, se a expedição e efetivação de intimação e de publicação de edital servirão tanto para o protesto como para a execução, etc.

Cabe ressaltar, que os arts. 18 a 21 do PL 6.204/2019, possibilita que a discussão retorne ao Judiciário, por meio de embargos à execução, suscitação de dúvidas e impugnação, o devedor poderá ter acesso ao contraditório, e ampla defesa.

Tal como Portugal, a implementação da desjudicialização aparenta ter necessário período de “incubação”, apenas atribuir o problema a outro ente também não é plausível, há verdadeira incumbência de permitir seu funcionamento, trazendo os meios necessários com constante participação de todos os poderes.

 

[1] Link disponível em: https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2022/09/justica-em-numeros-2022-1.pdf.

[2] LOURENÇO, Paula Meira. Processo Executivo. In: 40 Anos de Políticas de Justiça em Portugal. RODRIGUES, Maria de Lourdes; GAROUPA, Nuno; MAGALHÃES, Pedro; GOMES, Conceição; FONSECA, Rui Guerra da (Coord.). Coimbra: Almedina, 2017, p. 248-249.

[3] PL nº 6.204/2019 dispõe sobre a desjudicialização da execução civil de título executivo judicial e extrajudicial; altera as Leis nºs 9.430, de 27 de dezembro de 1996; 9.492, de 10 de setembro de 1997; 10.169, de 29 de dezembro de 2000; e 13.105 de 16 de março de 2015 – Código de Processo Civil. Atualmente encontra-se no Plenário do Senado Federal, aguardando inclusão na ordem do dia.

* Gustavo Kuerten

Advogado, Graduado pela UNISUL, Mestrando em Direito pela UFSC, Especialista em Direito Processual Civil pelo Complexo de Ensino Superior de Santa Catarina CESUSC, Especialista em Direito e Processo Previdenciário pela Damásio Educacional.