Observatory on European Studies - COMBATE À ESCRAVIDÃO MODERNA: DO CONSUMO CONSCIENTE À NORMATIZAÇÃO COMUNITÁRIA

2023-06-12

Foto grátis mãos amarradas de uma mulher de meia-idade

Joana Stelzer*, Michelle de Medeiros Fidélis**, Thyago de Pieri Bertoldi***

Quando no início de 2023 o noticiário brasileiro revelou o emprego de mão de obra análoga à escravidão em vinícolas, especialmente na cidade de Bento Gonçalves, no interior do Estado do Rio Grande do Sul, houve uma reação de choque da sociedade brasileira sobre as circunstâncias. A visão idílica da denominada Serra Gaúcha, ambiente romantizado pelo bom vinho e boa comida, era flagrado de forma ilegal (e, porque não dizer, imoral) com mais de 200 pessoas em situação de escravidão moderna. Emergia uma desilusão consumerista ou meramente se operava a ‘sociedade de consumo’ que Hannah Arendt havia previsto de forma pessimista em ‘A condição humana’? Ou seja, quando Arendt alertou que “o tempo excedente do animal laborans jamais é empregado em algo que não seja o consumo, e quanto maior é o tempo de que ele dispõe, mais ávidos e ardentes são os seus apetites. O fato de que estes apetites se tornam mais sofisticados, de modo que o consumo já não se restringe às necessidades da vida, mas ao contrário, concentra-se principalmente nas superfluidades da vida, não altera o caráter desta sociedade, mas comporta o grave perigo de que afinal nenhum objeto do mundo esteja a salvo do consumo e da aniquilação por meio do consumo” (ARENDT, 2010, p. 165). Esse, entre outros casos, lançou luz sobre um problema persistente na realidade brasileira e mundial: o trabalho em regime análogo de escravidão. Mas, também trouxe à baila: um problema de Estado ou da sociedade de consumo?

A escravidão flagra o sistema socioeconômico baseado na exploração de trabalho humano forçado (atrelado à restrição de liberdade) e degradante (labor em condições indignas e aviltantes). Prática milenar e, ainda, recorrente, a escravidão moderna adquiriu nova roupagem. A comercialização de seres humanos, típica da época colonial, cede lugar a novos instrumentos de recrutamento e coação de pessoas em posição de hipossuficiência, vulnerabilidade e necessidade de suprir seu mínimo existencial. Os trabalhadores continuam a ser tidos como objetos, dispensáveis e substituíveis; e, as condições de trabalho, não raro, revelam como seres humanos seguem se relacionando. Cumpre salientar outra circunstância agravante atrelada à existência de instrumentos normativos internacionais e nacionais, o que dissimula a escravidão moderna, com uso de artifícios jurídicos diversos, gerando maiores dificuldades não só na fiscalização pelos órgãos de controle, mas também no próprio senso de compreensão da situação pelos trabalhadores submetidos a essa condição de que estão sendo privados de suas liberdades fundamentais. 

A escravidão moderna é fruto da busca incessante, antiética e anticompetitiva pela redução incondicional dos denominados custos de produção, uma redução – em síntese – do ser humano a simples objeto de lucro. O processo de globalização não apenas fomentou pela flexibilização da relação de direitos mínimos trabalhistas, como igualmente permitiu a descentralização das cadeias de produção e, com isso, diversas empresas buscaram instalar suas unidades em locais com leis trabalhistas mais frágeis ou mesmo inexistentes. Tudo, no afã de permitir a diminuição das despesas. Esse modelo foi progressivamente fomentando o movimento denominado de ‘race to the bottom’, isto é, o cenário em que se busca criar vantagens competitivas entre países, empresas e trabalhadores por meio da redução de padrões sociais e econômicos. Com inspiração nessa ideia, mesmo empresas que não possuem interesse ou não podem descentralizar suas produções, empenham-se em criar estratagemas para eliminação de custos, ainda que isso envolva a precarização extrema da condição humana. É nesse cenário que se verificam os casos cotidianos de escravidão moderna no mundo e recentemente escandalizados no Brasil.

O comércio internacional possui papel ambíguo nesse cenário, de catalisador pela desenfreada busca de maior faixa de lucratividade no corte das despesas; à ferramenta de competitividade pós-moderna, de matriz pós Revolução Industrial. É um paradoxo em si. Vejamos o porquê.

Muitos foram e são os argumentos para justificar escravidão. No mundo moderno, a "missão evangelizadora" argumentava sobre a necessidade de escravizar africanos "infiéis". Considerado ser inferior, não lhe cabiam direitos. Mais contemporaneamente, o trabalho escravo (ou análogo) justificava-se pelo custo da mão-de-obra que encarecia o preço final das mercadorias. Por outro lado, motivos para acabar com a escravidão também existiram. Ainda no século XIX, a crescente industrialização e a necessidade de ampliação do mercado de consumo, fizeram com que diversos países ocidentais, capitaneados pela Inglaterra, lutassem contra o tráfico de escravos e o trabalho análogo ao de escravo. O objetivo era o crescimento dos mercados internos estrangeiros para absorção da produção industrial que se desenvolvia rapidamente em decorrência da Revolução Industrial. O fim do trabalho forçado – principalmente não remunerado e aviltante – na colônia portuguesa (já que todos os países da América espanhola já tinham abandonado o escravagismo) era imposição para o aumento do número de consumidores, até porque, apenas existe o mercado e o lucro, se há consumidores suficientes e remunerados para sustentá-lo. Os esforços encontraram relativo sucesso e resultaram na proliferação de leis antiescravidão e abolicionistas, na continuidade, por outros países ocidentais (o fim da escravidão perdurou ainda em outros lugares, foi proibida na China em 1909; enquanto na Etiópia foi proibida somente em 1942 por pressão internacional). Percebe-se, assim, que o nascimento e o desenvolvimento da legislação protetiva contra o trabalho forçado estão, muitas vezes, relacionados ao atendimento das exigências do mercado e sofreram influência das condições de existência do comércio internacional (tanto para bem, quanto para mal).

No Brasil, o combate ao trabalho escravo envolve, no caso da constatação de sua existência, expropriação de terras (artigo 243 da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988), sanções penais (segundo o artigo 149 do Código Penal Brasileiro, a redução a condição análoga à de escravo é punida com reclusão, de dois a oito anos, sem prejuízo da pena correspondente à violência) e divulgação pública das empresas que se utilizam de trabalho análogo ao de escravo (popularmente conhecida como ‘lista suja’, estabelecida em ato normativo editado pelo Poder Executivo Federal). Há muitos outros instrumentos normativos de combate, no entanto, o emprego de ‘escravos modernos’ persiste em território brasileiro. A responsabilização de grandes fornecedores é árdua, pois, em regra, alegam desconhecimento dos fatos e atribuem a prática de irregularidades a pequenas empresas parceiras e terceirizadas.

O cenário brasileiro também é vivenciado em outros países. Por verificar tais dificuldades em âmbito mundial, em 23/02/2022, a Comissão Europeia apresentou uma Proposta de Diretiva (n. 2019/1937) relativa a processos de Due Diligence Corporativo Sustentável, a qual propõe a incorporação de obrigações de sustentabilidade, com vistas a uma reengenharia para os negócios e finanças corporativas. Esse documento exige que as empresas identifiquem, previnam, mitiguem e remediem os impactos não apenas de suas matrizes (localizadas na União Europeia), mas também de suas filiais e empresas parceiras (situadas em qualquer país terceiro, resultado do denominado Efeito Bruxelas). Constatadas violações de Direitos Humanos nas cadeias de produção das empresas europeias (ou de parceiras), há possibilidade de sancionamento, sem prejuízo da proposição, pelas vítimas ou por outros interessados, de ações judiciais buscando a cessão das irregularidades e o ressarcimento pelos danos sofridos.

Esse procedimento, apesar de ainda não ter sido implementado, representa mudança radical na pretensão punitiva no direito internacional, fulminando tentativas empresariais e de outros países de não cumprirem com as normas internacionais de Direitos Humanos. É inegável que tal instrumento legislativo europeu tenha grande chance de sucesso, já que nenhuma empresa intenciona ter gastos extras e nem os países desejam que essas se retirem de seus locais ou que seu comércio internacional seja prejudicado.

Diversos países da União Europeia já têm se utilizado de normativas que monitoram empresas que promovam violações aos Direitos Humanos. Sob tal escopo, uma lei na França foi utilizada para notificar a rede (francesa) de lanchonete McDonald’s de adotar e implementar um plano de vigilância para garantir que seus fornecedores não estivessem envolvidos em infrações trabalhistas. A denúncia envolveria, supostamente, más práticas socioambientais de alguns fornecedores sul-americanos da rede de lanchonetes. Segundo três sindicatos franceses, o McDonald's francês não havia tomado medida ou realizado alguma publicação que demonstrasse um plano de vigilância que assegurasse os direitos humanos, a saúde e a segurança das pessoas e do meio ambiente. O monitoramento deveria incluir tanto a sede francesa quanto em terceirizados latino-americanos, dentre os quais fornecedores brasileiros de café, de suco de laranja e, inclusive, de soja destinada à alimentação animal. Como se percebe, cadeias de fornecimento possuem tentáculos de alcance longos. De qualquer modo, mesmo na inexistência de previsões normativas (nacionais) acerca de normas trabalhistas mínimas, as empresas sempre podem se utilizar de Códigos de Condutas. Vale dizer, declarações corporativas por meio da quais as empresas, as filiais e as empresas parceiras assumem o compromisso de observar padrões trabalhistas e que, além de vincular filiais e fornecedores, influencia a própria realidade do mercado de trabalho local.

Deve-se reconhecer que o papel do Estado na atividade de proteger e implementar restrições ao trabalho escravo encontra limites. Embora se reconheçam esforços legislativos e administrativos no combate direto à escravidão moderna, as formas ocultas se multiplicam e dificultam a completa erradicação. A sociedade civil, ainda, paralelamente, tem importante papel ativo no combate às medidas, fato decorrente da conscientização a respeito das atividades empresariais e consumeristas responsáveis. Afinal, a existência de um mercado socialmente ético ocorre não apenas pela intervenção estatal. É também necessário o encontro de consumidores conscientes e éticos com produtores responsáveis.

É fundamental que os consumidores compreendam que seu estilo de compra influencia o desenvolvimento humanitário. A adoção de práticas de consumo consciente tem o condão de impulsionar a incorporação nas empresas de valores relativos à função social do mercado. Com a sinalização do público consumidor de que a competitividade de um produto está necessariamente relacionada à observância de direitos humanos básicos, há um estímulo para adoção desse padrão pelo mercado. Diante desse cenário, as empresas se veem compelidas a se adaptar às emergentes exigências, sob pena de vivenciarem quedas expressivas em seus lucros. A crescente adoção de práticas ASG (Ambiental, Social e Governança) por empresas de variados portes é manifestação evidente do fenômeno: com receio de perda de receitas, os fornecedores sinalizam ao mercado que adotam práticas de sustentabilidade, de preocupação social e de combate à corrupção.

Percebe-se, portanto, que o combate à escravidão moderna é bastante complexo. Medidas legislativas e administrativas, sejam nacionais ou de direito comunitário, a exemplo da Proposta de Diretiva n. 2019/1937 da Comissão Europeia, são importantes, mas é essencial o envolvimento de consumidores e empresas para a criação de um mercado socialmente responsável e o desmantelamento de trabalhos forçados. Embora não seja simples, é possível alcançar lucro e justiça social, sendo o comércio internacional legítima ferramenta nesse propósito. 

 

* Joana Stelzer: Doutora pela UFSC. Pós-Doutora pela Faculdade de Direito da USP. Professora Associada III e credenciada na Pós-Graduação em Direito para Mestrado e Doutorado (PPGD/UFSC).

** Michelle de Medeiros Fidélis. Assessora Jurídica no Tribunal de Justiça de Santa Catarina. Doutoranda e Mestra em Direito Internacional, Econômico e Comércio Sustentável na UFSC. Pós-graduada em Jurisdição Federal na ESMAFESC.

*** Thyago de Pieri Bertoldi: Advogado da União. Mestrando em Direito Internacional, Econômico e Comércio Sustentável na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).