Observatory on European Studies - O Acordo de Compras Governamentais da OMC sob múltiplas perspectivas: a União Europeia, o Mercosul e o isolacionismo brasileiro

2023-04-25

Foto grátis moedas, papel-moeda e globo em branco antecedentes da forma estatística

Joana Stelzer* e Thyago de Pieri Bertoldi**

As contratações públicas representam parcela relevante na economia de um país, em geral de 10 a 15% do Produto Interno Bruto (PIB). Especificamente dentro dos membros da União Europeia (UE), entre 2006 e 2016, esse percentual foi de aproximadamente 14%, pouco superior à média dos membros da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), de 13,2%. No Brasil, membro-fundador do Mercado Comum do Sul (Mercosul), a participação das contratações públicas na economia nacional é de 12,5%, de acordo com o Ministério da Economia.

Embora evidente sua relevância para economia global, as contratações públicas entraram na pauta do comércio internacional apenas durante a Rodada de Tóquio (1973-1979), ao firmarem o primeiro acordo sobre a temática, o Código da Rodada de Tóquio sobre Compras Governamentais (Tokyo Round Code on Government Procurement). Entrando em vigor em 1981, em sua versão original, o acordo foi emendado em 1986 e a nova redação passou a valer em 1988. Durante as negociações da Rodada do Uruguai (1986-1994), os países interessados iniciaram negociações para ampliar o escopo e a abrangência do tratado sobre compras governamentais, o que resultou na assinatura, em 1994, em Marrakesh, do Acordo de Compras Governamentais 1994 (Government Procurement Agreement 1994 - GPA 1994). O acordo entrou em vigor, juntamente do Acordo de Constituição da Organização Mundial do Comércio (OMC), em 1º de janeiro de 1995.

Não muito depois do início da vigência do novo instrumento internacional, os Estados-partes já começaram renegociações para aprimoramento do instrumento. O processo foi finalizado em dezembro de 2011 e o novo texto do GPA 2012 foi adotado em março de 2012. Em abril de 2014, o GPA 2012 passou a vigorar para todos os Estados subscritores do acordo anterior, ao mesmo tempo que novos países interessados em aderir ao acordo promoviam processos de adaptação de suas contratações públicas para adequá-las aos novos termos do tratado. A Suíça foi o último dos países a depositar o instrumento na OMC, aquiescendo com suas cláusulas. Em 1º de janeiro de 2021, o GPA 2012 entrou em vigor para todos os Estados-partes e o texto do GPA 1994, definitivamente substituído.

O GPA 2012 consiste em um acordo plurilateral desenvolvido no âmbito da OMC, cujo objetivo é regulamentar a condução do comércio internacional nas licitações, baseado nos princípios da não discriminação, da transparência e da justeza procedimental. Conquanto a participação sinalize ao mercado o compromisso com a segurança jurídica e a transparência nas contratações públicas, nem todos os países membros da OMC são partes no tratado: somente 21 (vinte e um) dos 48 (quarenta e oito) Estados são signatários. Contudo, 35 (trinta e cinco) países membros ou observadores participam do Comitê de Compras Governamentais (Comittee on Government Procurement) na condição de observadores, sendo que 11 (onze) deles estão em processo de adesão ao GPA 2012.

Em maio de 2020, o Brasil formulou pedido de adesão ao Acordo sobre Compras Governamentais (GPA 2012), reforçado, em outubro do mesmo ano, após a realização de consulta pública, mediante respostas ao checklist da OMC para a acessão do Estado brasileiro como membro pleno ao acordo. O Brasil tornou-se, assim, o país com o pleito mais recente de acessão ao acordo plurilateral. O pedido do Estado brasileiro, porém, dá-se desacompanhado de seus pares do Mercado Comum do Sul (Mercosul). Embora Argentina e Paraguai sejam observadores do Comitê de Compras Governamentais da OMC, não há notícia de pedido de adesão argentina ou paraguaia ao GPA 2012. Venezuela e Uruguai, por seu turno, não participam da estrutura do acordo de qualquer maneira.

O processo de adesão brasileira, feito isoladamente, destoa significativamente daquele conduzido pelos países da União Europeia, que optaram pela acessão de seus 27 (vinte e sete) membros, ao acordo plurilateral em bloco. No GPA 1994, Áustria, Bélgica, Dinamarca, Finlândia, França, Alemanha, Grécia, Irlanda, Itália, Luxemburgo, Holanda, Portugal, Espanha e Suécia, aderiram em janeiro de 1996; Chipre, República Tcheca, Estônia, Hungria, Letônia, Lituânia, Malta, Polônia, Eslováquia e Eslovênia, em janeiro de 2004; Bulgária e Romênia, em janeiro de 2007; e, finalmente, a Croácia aderiu em julho de 2013. Para o GPA 2012, a acessão ocorreu em 6 de abril de 2014, por todos os membros do bloco econômico.

Essa diferença é significativa considerando que a extensão de cobertura do GPA 2012 (o que inclui órgãos e entidades; quais bens, serviços e mercados são alcançados; os valores limites de aplicabilidade das regras do acordo; e, principalmente, as exceções à incidência) é negociada entre os membros aderentes e os signatários.

A associação de pedidos feitos por membros de um mesmo bloco econômico dá maior poder de barganha aos candidatos à acessão (afinal, proporciona aos já membros do GPA 2012 acesso a um mercado ainda maior), permitindo a obtenção de melhores condições, em especial no período de transição até a plena aplicabilidade das regras do tratado de contratações públicas da OMC, o que é especialmente relevante para países em desenvolvimento, a exemplo do Brasil. Efetivamente, a dita ‘liberalização’ das contratações públicas pode trazer inúmeros benefícios para um país, em especial quanto à obtenção de propostas mais vantajosas do ponto de vista econômico, mas há necessidade de preparar o mercado interno para competição materialmente igualitária com empresas internacionais, sobretudo aquelas oriundas de países ricos.

 Nesse contexto, seguir o modelo da União Europeia na acessão ao GPA 2012 poderia ter sido benéfico ao Mercosul, garantindo melhores condições de negociação na cobertura e no período de transição do GPA 2012 aos membros do bloco econômico sul-americano. A opção de candidaturas isoladas, além do enfraquecimento da união aduaneira, demandará esforço individual muito maior de cada um dos membros do Mercosul. A opção de adesão conjunta dos membros da União Europeia ao GPA 2012, além de opção política acertada, evidencia a existência de maior maturidade regulatória do bloco econômico europeu quanto ao tema das contratações públicas.

Com efeito, o Parlamento Europeu possui vasta produção relativa às compras governamentais: Diretiva 2014/24/UE (sobre contratos públicos), Diretiva 2014/25/UE (sobre contratos públicos nos setores de água, da energia, dos transportes e dos serviços postais), Diretiva 2009/81/CE (sobre contratos públicos nas áreas de defesa e segurança), Diretiva 2014/55/UE (sobre faturação eletrônica em contratações públicas) e Diretiva 2014/23/UE (sobre a adjudicação de contratos de concessão).

O Mercosul, por seu turno, possui apenas o Protocolo de Contratações Públicas, assinado em 2017, e cujo início da vigência é incerto, dada a lentidão dos procedimentos de incorporação dos países membros do bloco. No Brasil, segundo a Agência Câmara de Notícias, após a Comissão de Relações Exteriores e de Defesa Nacional da Câmara dos Deputados aprovar o acordo internacional (dezembro de 2022), aguarda-se pela votação na Comissão de Desenvolvimento Econômico, Indústria, Comércio e Serviços; e, pelo Plenário da Câmara. O texto já foi aprovado pelas comissões de Finanças e Tributação; e, de Constituição e Justiça e de Cidadania (CCJ).

Em síntese, enquanto o tema das contratações públicas é central para a União Europeia, que reconhece a relevância econômica das contratações públicas, não somente em termos de volume de recursos, mas também como política econômica indutora de inovação e de melhoria na prestação de serviços públicos; no Mercosul, a discussão ainda é incipiente. Tal circunstância reflete nas escolhas políticas do bloco quanto à temática, especialmente no que tange ao impacto de compras públicas internacionais. Acompanhar a tendência da União Europeia de assinatura conjunta traria as contratações públicas para o centro do debate no Mercosul, potencializando a abertura das compras governamentais a mercados externos. Apesar disso, não se desconhecem fortes argumentos que podem desequilibrar a balança das vantagens e que ainda são passíveis de discussão, principalmente em virtude do pouco aprofundamento integracionista do Mercosul.

Afinal, a União Europeia, decidida que estava desde o início pela integração, não somente construiu um inusitado ordenamento jurídico, decodificando a Teoria da Integração Econômica a seu modo; mas, além disso, fincou as lanças do seu próprio crescimento econômico e foi capaz de sedimentar seu posicionamento no comércio mundial. Tratava-se de um processo inédito que, progressivamente, sempre foi alcançando novos espaços jurídicos. Desde 2014, como já salientado, também no âmbito das Compras Públicas a adesão conjunta do bloco europeu frisou cabalmente sua proposta. A irrestrita circulação de produtos sempre representou o pressuposto primário para o bloco europeu, não sendo diferente quando o assunto se referia às contratações governamentais de bens e serviços pelas autoridades públicas.

Enquanto isso, o Mercosul, que traz um quadro de indefinição em relação aos propósitos integracionistas, deixa passar oportunidade para desfazer assimetrias e difundir esforço conjunto na promoção comercial das compras públicas. A singular participação brasileira permite antever ‘no horizonte das trocas comerciais’ um desafio que será vivenciado sozinho, embora fosse no conjunto que as forças do Mercado Comum do Sul espelhariam a oportunidade da integração econômica.

* Joana Stelzer

Doutora pela UFSC. Pós-Doutora pela Faculdade de Direito da USP. Professora Associada III e credenciada na Pós-Graduação em Direito para Mestrado e Doutorado (PPGD/UFSC).

** Thyago de Pieri Bertoldi

Advogado da União. Mestrando em Direito Internacional, Econômico e Comércio Sustentável na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).