Observatory on European Studies - O aborto como demanda social e a votação do Parlamento Europeu pelo direito ao aborto seguro
Guilherme Domingos Wodtke*, Pedro Joceli Pignatel de Sousa** e Vanessa Thalia Linhares Medeiros Ramos***
O Movimento Feminista tem raízes em diferentes contextos quais sejam históricos, sociais e culturais. Na França, país membro da União Europeia (UE), por exemplo, a escritora Olympe de Gouges publicou durante a Revolução Francesa a “Declaração dos Direitos da Mulher Cidadã”. Na obra, a ativista francesa, já em 1791, demandava por Direitos como o da igualdade no acesso à educação, participação na política e a liberdade de pensamento. Infelizmente, depois de dois anos da publicação, Olympe de Gouges foi executada na guilhotina acusada de supostamente ser contrarrevolucionária por ter se posicionado contra o governo jacobino, que havia assumido o poder logo após a queda da monarquia francesa.
Cumpre destacar que as insurreições de Olympe de Gouges ressoam no movimento de liberação das mulheres até os dias de hoje, no século XXI. Nesse contexto, a luta pelo Direito ao Aborto emerge como uma reinvindicação central do movimento feminista. De acordo com estimativas publicadas pela Organização Mundial da Saúde (OMS), com dados coletados em 2008, no mundo, cerca de 73.000 mulheres morrem a cada ano em decorrência de complicações relacionadas ao aborto realizado em condições precárias e arriscadas. Ainda conforme a OMS, aproximadamente 7 milhões de mulheres necessitam de atendimento médico por complicações relacionadas ao aborto a cada ano[1].
Nos países membros da União Europeia, as mulheres mais vulneráveis a abortos inseguros são aquelas que enfrentam barreiras no acesso aos serviços de saúde sexual e reprodutiva, incluindo aquelas que vivem em áreas rurais ou remotas, jovens, imigrantes, refugiadas e mulheres em situação de vulnerabilidade socioeconômica. De acordo com dados da Eurostat, em 2019, o número total de abortos notificados na UE foi de cerca de 703.000, o que representa uma taxa de aborto de 11,9 por 1.000 mulheres em idade fértil. No entanto, é importante destacar que a taxa de aborto varia significativamente entre os países da UE e pode ser influenciada por fatores como as leis de aborto, a disponibilidade de contracepção e os serviços de saúde reprodutiva[2].
Em 07 de julho de 2022, o Parlamento Europeu aprovou a resolução n. 2022/2742(RSP), que solicita que o direito ao aborto seja incluído na Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia (UE), documento de importância fundamental por consagrar todos os direitos individuais, civis, políticos, econômicos e sociais garantidos a todos os indivíduos na União Europeia.
A resolução estabeleceu uma proposta que visa incluir o artigo 7º-A da Carta, na sessão “Respeito pela vida privada e familiar”, com a frase “todos têm direito ao aborto seguro e legal”. Ademais, o texto da proposta também pede para que os Estados-membros da União Europeia removam os obstáculos ao aborto seguro, respeitem as normas internacionais sobre direitos humanos, além de garantirem acesso a formas legais de interrupção da gravidez.
Entretanto, embora os europarlamentares tenham aprovado a resolução, por meio de votação que terminou com 324 votos a favor, 155 contrários e 38 abstenções, a decisão pelo direito ao aborto ainda não é definitiva. Qualquer alteração à Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, além de passar pelo Conselho Europeu, necessita da aprovação de todos os 27 países-membros do bloco, ou seja, precisa ser aceita de forma unânime pelos Estados partes para ser definitivamente aprovada.
Nesse sentido, ressalta-se que ainda existem países na União Europeia que impedem o aborto, em que se destaca a Polônia, por suas leis restritivas, e Malta, único país do bloco em que o aborto é totalmente proibido. Em Malta inclusive, em junho de 2022, uma cidadã estadunidense que aproveitava as férias no país se viu obrigada a viajar até a Espanha, já que mesmo apresentando complicações na gravidez, possivelmente fatais, se viu impedida de realizar o procedimento de aborto. Ademais, esse caso ocorrido em Malta foi, justamente, uma das causas para o direito ao aborto receber maior atenção na Europa.[3]
Outro destaque recente sobre o tema no continente europeu, refere-se ao acesso mais amplo ao aborto na Irlanda em 2019[4]. A legislação foi alterada para garantir o acesso ao aborto até 12 semanas de gravidez e em circunstâncias específicas após esse período. A mudança foi uma resposta ao resultado de um referendo histórico realizado na Irlanda em maio de 2018, no qual os eleitores votaram a favor da revogação da oitava emenda da Constituição irlandesa, que proibia quase todas as formas de aborto. Com a mudança, atualmente é permitido o acesso ao aborto em casos em que a gravidez representa um risco para a vida da mulher ou para sua saúde física ou mental, ou quando há anomalias fetais graves. Além disso, a partir da nova disposição legal, as mulheres podem solicitar um aborto até 12 semanas de gravidez sem precisar de uma justificativa específica.
No contexto brasileiro, em decisão recente[5], o Supremo Tribunal Federal (STF) não autorizou a interrupção de gestação em casos de fetos sem chance de vida extra-uterina, ainda que isso traga risco de vida à gestante. O juízo de primeiro grau negou o pedido para interrupção da gestação, a gestante então impetrou um Habeas Corpus que não foi aceito. O caso foi levado para o Superior Tribunal de Justiça e também foi negado por decisão monocrática. A mulher recorreu ao STF, que também negou o seguimento do habeas corpus, por questões processuais. Contudo, o ministro Edson Fachin foi um dos únicos a se manifestarem de forma não meramente processual, declarou que “em temas que versam sobre direitos das mulheres, a Corte Interamericana de Direitos Humanos tem exortado o Brasil a não reiterar omissões e silêncios no âmbito do seu sistema de Justiça" e apontou que não cabe ao STF criar o manual de todas as doenças e risco à saúde dos fetos e gestantes. Porque, acima de tudo, a Constituição Federal estabeleceu que a dignidade humana e saúde das pessoas são princípios básicos e, sendo assim, as barreiras processuais seriam uma forma de revitimização de quem já se encontra em vulnerabilidade e sofrimento.
Destaca-se que, sob a perspectiva legal, o Código Penal do Brasil considera o aborto como crime, ainda que estabeleça duas exceções no artigo 128: “I. se não há outro meio de salvar a vida da gestante;” e “II. se a gravidez resulta de estupro e o aborto é precedido de consentimento da gestante ou, quando incapaz, de seu representante legal”. Além disso, o Supremo Tribunal Federal (STF) brasileiro decidiu no julgamento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) n. 54, que é permitida a interrupção de feto anencéfalo.
Isto demonstra que no Brasil, o aborto é uma conduta, em regra, criminalizada, ainda que exista pressão de parte da sociedade civil em prol da descriminalização da prática. Logo, de acordo com a perspectiva do Parlamento da União Europeia pode-se afirmar que a legislação brasileira não está no mesmo estágio de debate em relação às novas perspectivas do direito ao aborto seguro.
Portanto, conclui-se que o aborto é um tema diretamente associado aos direitos das mulheres, que ainda não foi esgotado. Nesse sentido, é fundamental uma decisão como a do Parlamento da União Europeia, uma vez que cabe ao Poder Legislativo acompanhar as mudanças e novas demandas sociais, de modo a garantir legalmente maior dignidade e segurança aos cidadãos.
*Guilherme Domingos Wodtke
Mestrando em Direito Internacional pela Universidade Federal de Santa Catarina, com bolsa CAPES. Especialista em Direito do Consumidor, Processo Civil e Direitos Fundamentais.
** Pedro Joceli Pignatel de Sousa
Graduando do Curso de Direito da Universidade Federal de Santa Catarina
*** Vanessa Thalia Linhares Medeiros Ramos
Mestranda em Direito Internacional pela Universidade Federal de Santa Catarina, com bolsa CAPES. Especialista em Direito das Famílias e Sucessões.
[1] Organização Mundial da Saúde (OMS). Unsafe abortion: global and regional estimates of the incidence of unsafe abortion and associated mortality in 2008. 6ª ed. Genebra: OMS, 2011. Disponível em: <https://www.who.int/reproductivehealth/publications/unsafe_abortion/9789241501118/en/>
[2] https://ec.europa.eu/eurostat/statistics-explained/index.php/Abortion_statistics#Abortion_ratios.
[3]https://www.theguardian.com/global-development/2022/jun/22/us-woman-left-traumatised-after-malta-hospital-refuses-life-saving-abortion
[4]https://www.washingtonpost.com/made-by-history/2022/08/16/ireland-changed-its-antiabortion-laws-can-it-offer-blueprint-us/
[5] HC 220431 Agr, Relator: André Mendonça, Segunda Turma, Julgado Em 13/10/2022, Processo Eletrônico Dje-242 Divulg 29-11-2022 Public 30-11-2022