Observatory on European Studies - Due Diligence na União Europeia: entre a proteção dos direitos humanos e da concorrência

2023-02-13

Foto grátis natureza morta, ilustrando o conceito de ética

Joana Stelzer*

 

A temática dos Direitos Humanos nas Organizações possui robusta legislação internacional, embora a consecução demande desafios significativos para serem vencidos. Há, praticamente, um consenso na comunidade internacional quanto aos instrumentos normativos que Estados e Organizações devam respeitar, dentre os quais: a Carta das Nações Unidas (1945), a Declaração Universal de Direitos Humanos (1948); o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos, o Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (1976); os Princípios da Declaração da Organização Internacional do Trabalho; o Pacto Global da ONU (2000) ou, ainda os Guiding Principles on Business and Human Rights for implementing the UN Protect, Respect and Remedy Framework – conhecidos como Princípios Ruggie (2011). Há inúmeras iniciativas passíveis de enumeração. Em muitos casos, esses instrumentos internacionais se transformaram em leis nacionais obrigatórias, esquivando-se da esfera do ‘dever-ser’ internacional com as dificuldades que lhe são imanentes. As bases para obrigações aplicáveis estavam lançadas, ficando claro que envolvia não somente os Estados, mas, também atores não-estatais, inclusive empresas privadas. Em que pesem os avanços, a concorrência imperfeita entre as empresas, mormente o desequilíbrio entre os custos de produção na contratação da mão-de-obra fez com que muitos participantes abandonassem suas posições de compromisso com os Direitos Humanos. Isso permitiu (e permite) que certos sujeitos exerçam domínio sobre o mercado e influenciem o preço do que está sendo comercializado, precisamente porque estão escorados no desrespeito à legislação nacional e internacional. O fato de muitos Estados serem coniventes com a prática ofensiva aos direitos humanos fez com que os esforços internacionais ficassem esvaziados. Diante desse quadro, a União Europeia (UE) publicou (23.2.2022) proposta de Diretiva do Parlamento Europeu e do Conselho relativa ao dever de diligência das empresas em matéria de sustentabilidade e que altera a Diretiva (UE) 2019/1937 (COM(2022) 71 final), na qual ficaram consignadas as preocupações do bloco com a temática dos Direitos Humanos nas Organizações. A referida proposta elucida que a relação da economia da UE com milhões de trabalhadores em todo o mundo por intermédio de cadeias de valor mundiais traz implicações e responsabilidades do bloco com terceiros países. A considerar a interdependência de produção que existe na contemporaneidade, há a necessidade de regras transetoriais que, portanto, também alcançam o dever de diligência das empresas nos seus modos de produção (due diligence). Em 2021, na Declaração Conjunta sobre as Prioridades Legislativas da UE para 2022 (JO C 514I de 21.12.2021, p. 1), o Parlamento Europeu, o Conselho da União Europeia e a Comissão Europeia já tinham se comprometido a assegurar uma ‘economia ao serviço das pessoas’, fato que incluía otimizar a governança corporativa das empresas. Nesse ponto é necessário considerar que não se trata de uma preocupação unicamente no âmbito dos Direitos Humanos, mas da concorrência que se trava no comércio mundial. A fragmentação normativa, não somente em escala comunitária, mas internacional, proporciona condições de concorrência desiguais para o sistema de trocas externas.

Nesse ponto, emerge a importância das cadeias de valor transfronteiriças que, potencialmente, podem criar distorções da concorrência, inclusive dentro do próprio bloco europeu. O fato de empresas estarem sediadas em países que não respeitem a legislação laboral e/ou os Direitos Humanos faz com que se beneficiem no âmbito do dever de diligência, possuindo, portanto, uma vantagem em relação aos seus concorrentes.

Por tais circunstâncias, a referida proposta de Diretiva busca alcançar não somente a eliminação das distorções da concorrência intrabloco, mas também harmonizar os requisitos para as empresas externas ao bloco exercerem o dever de diligência. A partir do momento que o comércio se consagrou como transfronteiriço, emergiu também a necessidade de ordenamento jurídico que alcançasse os envolvidos além-fronteiras, pois somente assim haveria condições de comparação dos requisitos de obediência à legislação de proteção aos Direitos Humanos ou a qualquer outra que tivesse o potencial de gerar deformidades na concorrência. Esse é um ponto fulcral na discussão da devida diligência das empresas que impõe uma indagação: cuidar dos Direitos Humanos ou promover uma justa concorrência internacional? Afinal, quando empresas não estão abrangidas pela aplicação de um quadro normativo nacional ou pelo simples fato de o Estado não entender pertinente regras em matéria de dever de diligência, há aquisição por parte dessas corporações de uma vantagem em relação aos seus concorrentes. Informa a Diretiva que, de um modo geral, “existe um amplo reconhecimento entre as partes interessadas da necessidade de um quadro jurídico da UE para o dever de diligência” (p. 22). Essa é uma circunstância, aliás, que as próprias organizações teriam reconhecido em resposta a uma consulta pública aberta, no qual “as ONG apoiaram a necessidade de ação com 95,9 %, as empresas com 68,4 % (grandes empresas com 75,5 %, PME com 58,7 %) e as associações empresariais com 59,6 %” (nota de rodapé 65, p. 22)

A responsabilidade pela due diligence no bloco europeu, aliás, não se resume somente às empresas, mas aos administradores, enquanto pessoas que devem responder por seus atos de gestão. Os Estados-Membros devem assegurar que os administradores das empresas sejam responsáveis pela aplicação e supervisão das medidas relativas ao dever de diligência (art. 26). Os administradores devem ter em conta “as consequências das suas decisões em matéria de sustentabilidade, incluindo, se for caso disso, as consequências em termos de direitos humanos, alterações climáticas e ambientais, inclusive a curto, médio e longo prazo.” (art. 25), devendo informar o conselho de administração sobre o assunto (art. 26).

A propositura europeia, além da proteção aos Direitos Humanos, portanto, visa banir os obstáculos à livre circulação de mercadorias, em virtude de distorcer o quadro geral de concorrência entre elas. Segundo a Proposta de Diretiva, “[...] empresas de dimensão semelhante e os seus administradores estão sujeitos aos mesmos requisitos para a integração de medidas sustentáveis de governação empresarial e de dever de diligência das empresas nos seus sistemas de gestão interna, protegendo assim os interesses das partes interessadas da empresa de forma semelhante” (p. 13). As distorções podem se tornar mais graves com o tempo, em decorrência do race to the bottom (quando a competição entre sujeitos se utiliza do progressivo desmantelamento dos padrões de regulação existentes, especialmente para adquirir vantagem entre elas), fazendo com que as legislações nacionais divergentes conduzam a um nivelamento por baixo das legislações em matéria de dever de diligência. Nem todas as empresas estarão submetidas às normas de due diligence, “as pequenas e médias empresas (PME), que representam cerca de 99% de todas as empresas da União Europeia” (p. 17), estão excluídas do dever de diligência. Para essa categoria, os encargos financeiros e administrativos decorrentes da criação e aplicação de um processo de dever de diligência seriam elevados, além de não possuírem a expertise necessária.

Finalmente, cumpre lembrar que o dever de concorrência reflete justiça quando há um quadro normativo uníssono. Assim, a Diretiva reforça que há ordenamentos pátrios em matéria de dever de diligência que incluem um regime expresso de responsabilidade civil associado à não execução do dever de diligência, embora outros sequer fazem menção a tal situação. Na atualidade, os casos que envolvem due diligence são decididos com base em regras diferentes, circunstância que gera distorção competitiva entre as empresas. A fragmentação normativa, portanto, conduziria a distorções da concorrência. Enquanto “uma empresa localizada num Estado-Membro estaria sujeita a pedidos de indenização por danos causados na sua cadeia de valor, uma empresa com a mesma cadeia de valor estaria isenta deste risco financeiro e para a reputação devido a regras nacionais divergentes” (p. 16).

Em síntese, a Diretiva revela um intenso esforço na proteção aos Direitos Humanos, mas, sem desconhecer que a competição entre as empresas nesse domínio traz resultados imediatos na área da concorrência. A Comissão Europeia tem, repetidas vezes, investido em comunicados nos quais reforça a importância de um pleno funcionamento do mercado europeu, sempre destacando o combate à concorrência desleal. O documento em análise deixa evidenciada a preocupação do bloco com supostas vantagens competitivas que, na verdade, são oriundas de práticas tidas por desleais (e que também não encontram amparo nas discussões da Organização Mundial do Comércio – OMC). Esse conjunto de medidas voltadas sobre a due diligence buscará condições de competição equitativa entre empresas europeias e empresas estrangeiras (dentro ou fora da cadeia de produção), mesmo que o pano de fundo seja – paradoxalmente – os Direitos Humanos. 

*Joana Stelzer

 Doutora pela UFSC. Pós-Doutora pela Faculdade de Direito da (USP). Professora Associada III e credenciada na Pós-Graduação em Direito para Mestrado e Doutorado (PPGD/UFSC).