Observatory on European Studies - BEM-ESTAR E PROTEÇÃO DOS ANIMAIS NO ÂMBITO DOS COSMÉTICOS: AVALIAÇÃO DAS DIRETIVAS 2010/63/UE E 2003/15/CE NOS TESTES EM ANIMAIS NÃO HUMANOS

2022-11-28

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Joana Stelzer*

Marjorie Tolotti Silva de Mello**

Maurício Dal Pozzo Schneider***

Longos debates atravessaram séculos quando a discussão girava sobre o papel dos animais na qualidade de objetos de estudo e de uso em experimentos laboratoriais. Aristóteles definia os animais como seres inferiores, circunstância que justificou posição hierárquica desfavorável e sua manipulação em prol do conhecimento e da ciência. O século XVII, por sua vez, foi marcado pela teoria utilitarista de Descartes, o qual sustentava a gritante separação entre corpo e alma, culminando na impossibilidade de atribuição de sensações aos animais e na negação da consciência e do juízo, resultando na negação do sofrimento e da expressão. 

Os debates sobre bem-estar animal avançaram sobretudo a partir do século XX, especialmente nos anos 70. Os animais passaram a ocupar lugar de destaque no plano ético, moral, jurídico e político, sendo a sua proteção e defesa parte da construção das relações ética-humanas. Peter Singer retomou o utilitarismo de Jeremy Bentham, reformulando-o com suas próprias bases, publicando – em 1975 – ‘Libertação Animal’; e, posteriormente, ‘Ética Prática’ e ‘Vida Ética, juntamente com Tom Regan. Ambos se tornaram os grandes expoentes na defesa dos animais, assim como os responsáveis por transformar a percepção sobre os animais não humanos relativamente à igualdade de interesses. 

Como consequência do reconhecimento da necessidade de tratamento diferenciado, surgiu uma série de leis, declarações e resoluções cuja finalidade era assegurar a dignidade e a proteção jurídica dos animais não humanos em uma série de aspectos que os envolvem, dentre os quais: prazeres gastronômicos (como no caso do foie gras), diversão (zoológicos, aquários, e santuários), vestuário (utilização de peles em roupas, sapatos e acessórios) e a experimentação científica (tanto para pesquisa quanto para desenvolvimento de cosméticos e outros produtos).

A discussão gira em torno da experimentação animal ou vivissecção, que se defende como injustificável não somente em termos ético e morais, por causar dor e sofrimento animal, mas por ser, muitas vezes, enganosa e perigosa. Em termos de proteção internacional, é importante citar a elaboração da Declaração Universal dos Direitos dos Animais aprovada pela UNESCO, em Bruxelas – Bélgica, no ano de 1978, como destacado marco para a defesa e proteção do direito animal. O documento começa por declarar ‘a igualdade entre os animais’ e o seu ‘direito à vida’, rogando que “todos os animais nascem iguais diante da vida e têm o mesmo direito à existência” (UNESCO, 1978). 

A Declaração de Cambridge, publicada em 2012, apesar de não possuir força vinculativa é outro exemplo de documento internacional que reconhece a consciência animal, ao destacar que “A ausência de um neocórtex não parece impedir que um organismo experimente estados afetivos. Evidências convergentes indicam que os animais não humanos têm os substratos neuroanatômicos, neuroquímicos e neurofisiológicos de estados de consciência juntamente como a capacidade de exibir comportamentos intencionais. Consequentemente, o peso das evidências indica que os humanos não são os únicos a possuir os substratos neurológicos que geram a consciência. Animais não humanos, incluindo todos os mamíferos e as aves, e muitas outras criaturas, incluindo polvos, também possuem esses substratos neurológicos”.

A União Europeia é pioneira na regulamentação de testes em animais, com longo histórico de aprovação de Diretivas, Resoluções e Regulamentos. Todo esse arcabouço jurídico não só reconhece o bem-estar animal como um valor do bloco, inclusive consagrado no artigo 13º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia (TFUE), como garante certa flexibilidade aos Estados-Membros para manterem regras nacionais que visem a uma ‘proteção mais ampla’, desde que sejam compatíveis com o TFUE e que não afetem o funcionamento do mercado interno.

A primeira Diretiva de que se tem notícia é a Diretiva 76/768/CEE da (então) Comunidade Econômica Europeia (CEE), que previu normas básicas de comercialização de cosméticos, proibindo a utilização de determinadas substâncias e normatizando outras disposições como rotulagem e embalagem. Após anos de vigência, as disparidades entre os membros do bloco refletiram em entraves às liberdades de circulação de produtos e substâncias cuja elaboração envolvesse experiências com animais. Em 2010, o Parlamento Europeu em conjunto com o Conselho da União Europeia aprovou a Diretiva 2010/63/EU relativa à proteção dos animais utilizados para fins científicos em substituição à Diretiva 86/609/CEE. A norma trazia muitos avanços, mas mantinha retrocessos do ponto de vista do Direito Animal.

 A razão para um novo ordenamento surgiu justamente pela falta de unidade legislativa entre os países do bloco. Era certo que a Diretiva 86/609/CEE garantia requisitos básicos de proteção ao bem-estar animal, mas igualmente permitia que os Estados tivessem a liberdade de estabelecer suas próprias regulações sem se subordinarem à entidade supranacional. Além disso, as medidas adotadas na Diretiva 86/609/CEE possuíam caráter bem-estarista, mas, não abolicionista, uma vez que apenas previa procedimentos que mitigassem os efeitos do sofrimento animal, além de proibir a imposição de procedimentos impostos desnecessariamente aos animais, ou que lhes infligisse qualquer dor, sofrimento, aflição ou dano permanente inútil.

Para contornar os obstáculos, a nova Diretiva 2010/63/UE foi aprovada com o propósito de estabelecer regras pormenorizadas para reduzir disparidades legislativas, regulamentares e administrativas entre os Estado-Membros. No campo do bem-estar animal, a norma reforçaria os cuidados relativos a alojamento dos animais incorporados pela Recomendação 2007/526/CE, o que incluía os animais ciclóstomos (como lampreias e peixes-bruxa, vale dizer, vertebrados mais primitivos) e cefalópodes (como polvos e lulas), na qualidade de sentirem dor, sofrimento, angústia e dano duradouro. Além disso, estabeleciam-se regras muito mais específicas quanto aos métodos alternativos de testagem.

Outro avanço da Diretiva 2010/63/UE foi reconhecer a si mesma como um passo importante para alcançar o objetivo final de ‘substituir totalmente os procedimentos com animais vivos para fins científicos e educativos, facilitando e promovendo o desenvolvimento de abordagens alternativas’. A Diretiva determinava que a escolha dos métodos alternativos e das espécies devia ser cautelosa, assegurando a seleção do método suscetível de proporcionar resultados mais satisfatórios e de provocar o mínimo de dor, sofrimento ou angústia. Em síntese, a utilização de animais para fins científicos ou educativos só deveria ser considerada quando não existisse uma alternativa não animal, sendo esse um passo importante para alcançar o objetivo final de substituir completamente os procedimentos com animais vivos.

No entanto, a Diretiva 2010/63/UE embora reconhecesse que era desejável substituir a utilização de animais vivos em procedimentos por outros métodos que não implicassem efetiva utilização, ainda tolerava que o recurso a animais vivos continuasse a ser necessário para proteger a saúde humana, animal e ambiental, em nítido aceno ao especismo e ao antropocentrismo.

Evoluindo na sistematização do seu conjunto normativo, em 11 de março de 2013, a União Europeia, por intermédio da Diretiva 2003/15/CE, colocou fim na realização de testes em animais para todos os produtos cosméticos comercializados na União Europeia. A Diretiva 2003/15/CE representou importante passo em matéria do aperfeiçoamento da normativa europeia para o bem‑estar animal ao prevenir eliminação progressiva dos testes em animais na área dos cosméticos. Nesse sentido, estabelece: “[...] os Estados-Membros proibirão: a) A colocação no mercado de produtos cosméticos cuja formulação final, a fim de obedecer aos requisitos da presente Diretiva, tenha sido objeto de ensaios em animais mediante a utilização de método que não seja método alternativo, após ter sido validado e aprovado a nível comunitário, tendo em devida consideração o desenvolvimento da validação no âmbito da OCDE”.

O diferencial da Diretiva 2003/15/CE, para suas antecessoras, é que ela passou a proibir os testes em animais mesmo que os chamados métodos alternativos ainda não estivessem disponíveis no mercado (inclusive no setor de cosméticos). Para os demais setores, os mais altos padrões de bem-estar foram exigidos. A União Europeia continuou a recomendar que os testes fossem, na medida do possível, substituídos ou reduzidos.

Evidenciava-se o vasto conjunto normativo relativo ao bem-estar animal, na qual a tendência passava a ser a aplicação de caráter abolicionista, em detrimento do bem-estarismo. O objetivo final, por óbvio, era acabar com toda e qualquer exploração animal. E, nesse sentido, verificou-se uma tendência importante oriunda do arcabouço da Legislação europeia que desempenhava papel pedagógico fundamental para terceiros países, especialmente a Diretiva 2003/15/CE (relativa à aproximação das legislações dos Estados--Membros respeitantes aos produtos cosméticos) e o Regulamento (CE) n. 1223/2009 (estabelecia as informações obrigatórias que devem ser incluídas na embalagem e recipiente de um produto cosmético). Com isso, passou-se a aguardar que outros Estados pudessem se espelhar no Velho Continente para criarem ou refinarem suas legislações. 

Cumpre perceber que o arcabouço normativo europeu concernente à proibição dos testes de animais, ainda que restrita aos cosméticos, tinha potencial para provocar efeito nas relações comerciais do bloco, considerando que as restrições também se aplicavam aos produtos importados. Nesse sentido, a modificação do paradigma antropocentrista tinha potencial capaz de penetrar diversas relações sociais, revolucionando-as. Para além do caráter futurista e pedagógico das Diretivas, que contavam com o apoio da biotecnologia (os métodos alternativos), desejavam-se mudanças nas relações comerciais do bloco com países terceiros. Tratava-se de verdadeira transição de pensamento, na qual nenhum impeditivo burocrático ou procedimental deveria servir de pretexto para justificar o sofrimento animal. 

Em síntese, verificava-se mudança de paradigma (embora muito ainda existisse a ser feito), em que o especismo (tratamento desfavorável injustificado daqueles que não pertencem a uma certa espécie por razões que não tem a ver com as capacidades individuais que possuem) fosse completamente abandonado e o biocentrismo passasse a ser o centro das relações entre homem e natureza.

O tema é de palpitante interesse para os cidadãos comunitários como revela o Eurobarômetro (edição especial 442) sobre as Atitudes dos europeus em relação ao bem-estar dos animais, inclusive quanto ao papel da UE no intuito de promover maior sensibilização para o bem-estar dos animais a nível mundial. Na qualidade de consumidores, os comunitários declararam-se dispostos a pagar mais pelos produtos que respeitam o bem-estar dos animais. O respeito animal exsurge como um dos mais significativos sinais de evolução civilizatória. No singelo ensinamento de Albert Schweitzer, “Quando o homem aprender a respeitar até o menor ser da criação, seja animal ou vegetal, ninguém precisará ensiná-lo a amar seus semelhantes.”

* Joana Stelzer

Doutora em Direito na UFSC. Professora Associada III e credenciada na Pós-Graduação em Direito para Mestrado e Doutorado na UFSC.

** Marjorie Tolotti Silva de Mello

Mestranda em Direito Internacional, Econômico, e Comércio Sustentável pela UFSC. Pós-Graduanda em Direito Urbanístico e Ambiental. Membro da Comissão em Direito Ambiental e Direito dos Animais da OAB/SC. Advogada.

*** Maurício Dal Pozzo Schneider

Advogado. Mestrando em Direito Internacional, Econômico e Comércio Sustentável na UFSC. Pós-graduado em Direito Aduaneiro e Comércio Exterior Brasileiros na Univali.