Observatory on European Studies _ Acordo pós-BREXIT reascende a polêmica sobre a soberania das Ilhas Malvinas

2021-03-02

Por Aline Beltrame de Moura*

Após intensos debates e incertezas, Reino Unido e União Europeia firmaram em 25 de dezembro de 2020 o acordo comercial que estabelece como se darão as suas relações no pós-BREXIT. O objetivo do acordo de mais de 1200 páginas foi o de disciplinar a futura relação comercial anglo-europeia e, assim, evitar uma saída brusca do Reino Unido, hipótese que não seria vantajosa para nenhuma das economias já fragilizadas pela pandemia da Covid-19.

A situação, contudo, adquire uma roupagem particular ao reascender a polêmica entorno da soberania sobre as Ilhas Malvinas na medida em que o acordo deixou de fora os territórios britânicos ultramarinos, os quais acabaram perdendo o tratamento aduaneiro especial que possuíam com a comunidade continental.

De fato, o artigo FINPROV.1, que dispõe sobre o âmbito territorial de aplicação do acordo, é expresso ao afirmar no ponto 4 que o mesmo “não se aplica aos territórios ultramarinos que mantenham relações especiais com o Reino Unido: Anguila; Bermudas; Território Antártico Britânico; Território Britânico do Oceano Índico; Ilhas Virgens Britânicas; Ilhas Caimão; Ilhas Falkland; Monserrate; Ilhas Pitcairn, Henderson, Ducie e Oeno; Santa Helena, Ascensão e Tristão da Cunha; Ilhas Geórgia do Sul e Sandwich do Sul; Ilhas Turcas e Caicos.” Da mesma forma, deixa expresso que não produz efeitos sobre Gilbratar, contudo, aplica-se parcialmente à Bailiado de Guernsey, ao Bailiado de Jersey e à Ilha de Man, somente no tocante à determinadas áreas como pesca e indicação geográfica.

Com a exclusão operada pelo acordo, os territórios ultramarinos perdem as cotas de acesso e a redução tarifária que recebiam da União Europeia, além da assistência financeira para desenvolver uma economia altamente dependente da pesca que, no caso das Malvinas, representa cerca de 60% do PIB local e das exportações que dependem 90% do mercado europeu[1][2].

Ainda durante as negociações pós-BREXIT, o governo argentino solicitou incessantemente às autoridades da União Europeia que, no marco do acordo comercial, as ilhas fossem consideradas um território em litígio ao invés de constar como território britânico.

A Argentina baseia seu posicionamento no argumento de que as ilhas são oficialmente consideradas pelas Nações Unidas como “território em disputa entre os governos da Argentina e do Reiuno Unido”[3], sendo enquadradas na qualidade de “Territórios Não Autônomos”, ao lado de outras nove regiões administradas pelo Reino Unido ao longo do Atlântico, Caribe, Europa e Pacífico. Por tal razão, a Argentina entende que os mesmos se submetem ao regime imposto pela Declaração sobre a Concessão de Independência aos Países e Povos Coloniais (Resolução 1514 (XV) da Assembleia Geral de 1960).

O Capítulo XI da Carta das Nações Unidas sobre “Declaração relativa a territórios sem governo próprio” define esse tipo de território como aqueles “cujos povos não tenham atingido a plena capacidade de se governarem a si mesmos”. A Resolução 66 (I) de 14 de dezembro de 1946 da Assembleia Geral, incluiu uma lista contendo 72 territórios aos quais eram aplicados o mencionado Capítulo e, dentre eles, figurava Falkland Islands. Neste documento, a delegação da Argentina fez uma reserva para fins de não reconhecimento da soberania britânica nas Ilhas Malvinas e, do mesmo modo, a delegação do Reino Unido se manifestou no sentido de não reconhecer a soberania argentina nestas ilhas.

Atualmente, 17 “Territórios Não Autônomos” continuam a figurar no programa do Comitê Especial de Descolonização e os Estados Membros que têm ou assumem a responsabilidade pela administração desses territórios são chamados de Potências Administradoras.

Por sua vez, o Reino Unido fundamenta seus argumentos de soberania na região no princípio da autodeterminação dos povos, alegando que dois referendos já foram realizados, o primeiro em 1986 e o segundo em 2013[4], e que em ambos os habitantes das ilhas se manifestaram no sentido de que desejavam permanecer sob a administração do Reino Unido enquanto território ultramarino.

A disputa sobre o arquipélago é antiga. No século XVIII, o embate foi travado entre britânicos, franceses e espanhóis e, a partir disso, a Argentina passou a reivindicar as ilhas do Reino Unido. Em 1833, contra o desejo dos argentinos, os britânicos incorporaram as Ilhas Falklands ao seu vasto e crescente império e gradualmente estabeleceram ali uma nova colônia[5], povoada principalmente por escoceses que se dedicavam à pesca e à pecuária.

A Argentina nunca consentiu com a “conquista” britânica e seu desejo de “recuperar” as ilhas por meio da diplomacia aumentou com o advento das Nações Unidas e o movimento de descolonização que se intensificou após a Segunda Guerra Mundial. No início do governo de Margareth Thatcher, o assunto foi retomado pois o Reino Unido desejava cortar gastos com a administração dos seus territórios ultramarinos, porém não se pode esquecer que as Malvinas são uma região estrategicamente posicionadas no Atlântico Sul e muito próximas à Antártica, e as negociações sobre a cedência pacífica das ilhas não progrediram, culminando com a Guerra das Malvinas em 1982. O conflito durou cerca de dois meses e se encerrou em junho do mesmo ano, com a derrota da Argentina e a manutenção do arquipélago por parte do Reino Unido.

O acordo pós-BREXIT reascende as chamas desse histórico conflito. Em termos práticos, o Conselho das Malvinas, órgão criado pelo governo argentino em 2020 para definir as políticas de Estado nesse tema, está avançando na criação de várias comissões interdisciplinares com o objetivo de fortalecer a reinvindicação de soberania sobre as ilhas do Atlântico Sul, após a exclusão do arquipélago do acordo comercial entre União Europeia e Reino Unido. A ideia do Conselho é elaborar o conteúdo da posição argentina perante os foros internacionais, com base em aspectos geográficos, ambientais, históricos, jurídicos e políticos[6].

A Argentina interpretou a postura da União Europeia em excluir os territórios ultramarinos do Reino Unido do acordo como uma evidente manifestação de desaprovação da política colonial britânica. Esse posicionamento vem na esteira de importante opinião consultiva requerida pela Assembleia Geral das Nações Unidas à Corte Internacional de Justiça em relação à situação do arquipélago de Chagos, em 2019[7]. Na ocasião, a Corte entendeu que o Reino Unido não havia realizado o processo de descolonização de sua ex-colônia de maneira legítima e, portanto, deveria terminar sua administração no arquipélago o mais rápido possível. Interessante notar que a Corte relacionou seu poder jurisdicional à matéria da descolonização, afastando qualquer discussão ligada à independência em si de Maurício, ocorrida em 1968[8].

Considerando todo esse contexto favorável, a Argentina percebeu uma oportunidade única de encontrar novos apoiadores que a auxiliem no trabalho de levar Londres novamente à mesa de negociação e pôr fim a centenária disputa sobre o arquipélago das Malvinas/Falklands.

 

[1] https://www.cronista.com/economia-politica/El-Gobierno-se-mete-en-la-negociacion-del-Brexit-con-un-planteo-que-golpea-la-economia-kelper-en-Malvinas-20201223-0044.html.

[2] https://www.telam.com.ar/notas/202101/541776-el-consejo-malvinas-avanza-en-la-elaboracion-de-politicas-de-estado-en-torno-a-las-islas.html.

[3] https://www.un.org/dppa/decolonization/en/nsgt.

[4] https://www.theguardian.com/commentisfree/2013/mar/09/meaningless-falklands-referendum-uk-sovereignty.

[5] LAVER, Roberto. The Falklands/Malvinas Case. The Hague: Martinus Nijhoff Publishers, 2001, p. 19.

[6] https://www.telam.com.ar/notas/202101/541776-el-consejo-malvinas-avanza-en-la-elaboracion-de-politicas-de-estado-en-torno-a-las-islas.html.

[7] CIJ, Legal consequences of the separation of the Chagos Archipelago from Mauritius in 1965, Advisory Opinion of 25 January 2019.

[8] LIMA, Lucas Carlos. A opinião sobre o Arquipélago de Chagos: a jurisdição consultiva da Corte Internacional de Justiça e a noção de controvérsia. Rev. Fac. Direito UFMG, Belo Horizonte, n. 75, jul./dez. 2019, p. 287.

*Aline Beltrame de Moura

Professora da Universidade Federal de Santa Catarina, Brasil

Coordenadora do Jean Monnet Network "Bridge Project"

Coordenadora do Jean Monnet Module CCJ/UFSC