Observatory on European Studies - Desenvolvimentos recentes na regulação da economia digital pela União Europeia
Nuno Cunha Rodrigues*
Desde o início do ano 2000 que o mundo vem assistindo à disrupção dos modelos de comércio tradicionais, decorrente da emergência de uma economia digital que, num mundo globalizado, transformou, definitivamente, os hábitos de consumo da população mundial.
A resposta aos desafios suscitados pela nova economia digital foi dada inicialmente, no plano jurídico, por instrumentos clássicos. Esta circunstância traduziu-se, por exemplo, na aplicação, à economia digital, das liberdades de circulação dentro do mercado interno europeu[1]; do Direito do Trabalho ou do Direito da Concorrência. Foi assim possível acomodar muitas das novas dimensões jurídicas trazidas pela economia digital tendo em consideração a sua plasticidade destas áreas do Direito.
Porém, esta nova economia era, em muitos aspetos, diferente da que resultava do paradigma económico clássico. Desde o início suscitou novas questões jurídicas para as quais não era possível dar respostas baseadas nos modelos jurídicos tradicionais ou que se situavam em zonas de fronteira de diferentes áreas do Direito.
De forma exemplificativa o Direito da Concorrência clássico foi confrontado com novos desafios tais como os decorrentes da necessidade de se definirem mercados relevantes no contexto da economia digital, perante a qual a conhecida comunicação da Comissão Europeia de 1997 revelava-se manifestamente insuficiente; o surgimento de mercados a preço zero, disponibilizados por plataformas electrónicas que suscitam questões jus-concorrenciais em mercados conexos pagos; operações de concentração de empresas – v.g. aquisições de empresas emergentes por grandes operadores (killer acquisitions) - que escapavam aos radares das autoridades da concorrência competentes ou ainda a necessidade de acautelar a proteção de dados e de atenuar o poder de mercado de empresas que possuíam grandes bases de dados. Numa outra dimensão, a qualificação das relações laborais prestadas no contexto das plataformas colaborativas colocou, de forma equivalente, novos desafios ao Direito do trabalho.[2]
Não foi por isso surpreendente que, por forma a dar resposta a algumas das novas questões suscitadas pela economia digital, a União Europeia tenha delineado, em 2020, uma estratégia para a economia digital conhecida por «Construir o futuro digital da Europa» (“Shaping Europe’s Digital Future”[3]) assente em três pilares: (a) A tecnologia ao serviço dos cidadãos; (b) Uma economia digital justa e competitiva e (c) Uma sociedade aberta, democrática e sustentável. Esta estratégia secundou a aprovação, no passado, de diversa legislação aplicável à economia digital tal como, entre outros, o Regulamento Geral de Proteção de Dados (RGPD)[4]; o Regulamento relativo ao livre fluxo de dados não pessoais[5]; o Regulamento sobre cybersegurança[6] ou a Diretiva relativa a dados abertos.[7]
Não obstante persistem algumas debilidades e lacunas decorrentes da incapacidade e insuficiência de aplicação de instrumentos jurídicos clássicos – sobretudo relacionados com Direito da Concorrência - aos novos modelos digitais de negócio.
Neste contexto, a Comissão Europeia apresentou, recentemente, as seguintes três propostas de regulamentos que visam, justamente, preencher lacunas jurídicas na regulação de diversos aspetos da economia digital:
- Proposta de Regulamento de Serviços Digitais (DSA);
- Proposta de Regulamento sobre Mercados Digitais (DMA);
- Proposta de Regulamento sobre inteligência artificial (IA);
O DSA e o DMA têm dois objetivos principais (i) criar um espaço digital mais seguro no qual sejam protegidos os direitos fundamentais de todos os usuários de serviços digitais e (ii) estabelecer condições equitativas para promover a inovação, o crescimento e a competitividade, tanto no mercado único europeu como globalmente.
A primeira proposta – Regulamento sobre mercados de serviços digitais (Digital Services Act – DSA)[8] – estabelece obrigações para os prestadores de serviços digitais, como as redes sociais ou os mercados online, para combater a propagação de conteúdos ilegais, a desinformação online e outros riscos sociais.
Este Regulamento destina-se, principalmente, a intermediários e plataformas online tais como mercados de compra e venda online, redes sociais, plataformas de compartilhamento de conteúdos, lojas de aplicativos e plataformas de viagens e acomodações online.
Procura-se, dessa forma, combater as chamadas fake news, através da promoção da auto-regulação, bem como definir formas de responsabilização dos operadores que disponibilizam bens, serviços e conteúdos on-line.
São ainda estabelecidas regras específicas para as chamadas “grandes plataformas online”, consideradas como aquelas que conseguem alcançar mais de 10% dos 450 milhões de consumidores na UE.
A violação do DAS pode motivar a aplicação de coimas que podem ir até 6 % do volume de negócios das empresas em causa.
O DSA será diretamente aplicável em toda a UE e entrará em vigor quinze meses depois da data de publicação ou a partir de 1 de janeiro de 2024, conforme a data que ocorra mais tarde.
No segundo caso – Regulamento sobre Mercados Digitais (Digital Markets Act – DMA) – são definidas regras para as plataformas on-line de grande dimensão (“gatekeeper”).[9]
Visa-se assegurar que nenhuma plataforma de grande dimensão que esteja numa posição de “gatekeeper” ("controlador de acesso") face a um grande número de utilizadores abuse dessa posição em detrimento de empresas que pretendam aceder a esses utilizadores. Serão consideradas como “gatekeeper” as plataformas digitais com papel sistémico no mercado interno, que funcionem como bottlenecks (“gargalos” ou “estreitamento”) entre empresas e consumidores, no âmbito do fornecimento de relevantes serviços digitais. As empresas qualificadas como “gatekeepers” serão designadas pela Comissão Europeia e terão um prazo máximo de seis meses após a decisão de designação para garantir o cumprimento das obrigações estabelecidas no Regulamento.
Se um “controlador de acesso” (“gatekeeper”) violar as regras definidas neste Regulamento, a Comissão poderá aplicar coimas até 10 % do seu volume de negócios total a nível mundial no exercício precedente ou até 20 % em caso de incumprimento reiterado.
A terceira proposta de Regulamento visa regular a chamada inteligência artificial (IA).[10]
Esta proposta categoriza os sistemas de inteligência artificial em três níveis de risco e atribui a cada nível um enquadramento legal específico, com suas próprias limitações e obrigações.
Todas as soluções incluídas na proposta fundam-se na categorização designada por risk based approach. Desta forma o regulamento estabelece uma lista de práticas de IA proibidas baseada no risco e diferencia entre as utilizações de IA que criam: i) um risco inaceitável, ii) um risco elevado, iii) um risco baixo ou mínimo. A lista de práticas proibidas inclui todos os sistemas de IA cuja utilização seja considerada inaceitável por violar os valores da União, por exemplo, direitos fundamentais.
Este Regulamento será aplicável no prazo de vinte e quatro meses após a sua entrada em vigor.
Estas três propostas foram aprovadas pelo Parlamento Europeu em julho de 2022, estando ainda em falta a aprovação por parte do Conselho Europeu.
Em síntese, estas três novas propostas de Regulamento visam permitir uma (desejável) maior regulação da economia digital. Espera-se que, quando estes novos instrumentos entrarem em vigor – previsivelmente em 2024 – venham a ter um profundo impacto não apenas na União Europeia mas também a nível global, atendendo à sua originalidade e à relevância que o espaço europeu tem para as grandes empresas mundiais localizadas em países terceiros.
É por isso de prever que as propostas venham a ser, mais tarde, a servir como inspiração, em países terceiros, para a adoção de legislação nacional idêntica, à semelhança do que sucedeu, no passado, com o RGPD em diferentes ordenamentos jurídicos a nível mundial.
[1] Cfr. Diretiva 2000/31/CE (Diretiva sobre o comércio eletrónico).
[2] A este propósito v. Nuno Cunha Rodrigues, (2019). The regulation of collaborative economy in the European Union. UNIO – EU Law Journal, 5(1), 40–53, disponível em https://doi.org/10.21814/unio.5.1.249 .
[3] Cfr. https://ec.europa.eu/info/sites/default/files/communication-shaping-europes-digital-future-feb2020_en_4.pdf
[4] Cfr. Regulamento (UE) 2016/679 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 27 de abril de 2016.
[5] Cfr. Regulamento (UE) 2018/1807 do Parlamento Europeu e do Conselho de 14 de novembro de 2018 relativo a um regime para o livre fluxo de dados não pessoais na União Europeia
[6] Cfr. Regulamento (UE) 2019/881 do Parlamento Europeu e do Conselho de 17 de abril de 2019 relativo à ENISA (Agência da União Europeia para a Cibersegurança) e à certificação da cibersegurança das tecnologias da informação e comunicação.
[7] Cfr. Diretiva (UE) 2019/1024 do Parlamento Europeu e do Conselho de 20 de junho de 2019 relativa aos dados abertos e à reutilização de informações do setor público.
[8] Cfr. Proposta de Regulamento do Parlamento Europeu e do Conselho relativo a um mercado único de serviços digitais (Regulamento Serviços Digitais) e que altera a Diretiva 2000/31/CE. Bruxelas, 15.12.2020 COM(2020) 825 final).
[9] Cfr. Proposta de regulamento do Parlamento Europeu e do Conselho relativo à disputabilidade e equidade dos mercados no setor digital (Regulamento Mercados Digitais) (Bruxelas, 15.12.2020, COM(2020) 842 final, 2020/0374(COD)).
[10] Cfr. Proposta de Regulamento do Parlamento Europeu e do Conselho que estabelece regras harmonizadas em matéria de inteligência artificial (Regulamento Inteligência Artificial) e altera determinados atos legislativos aa União (Bruxelas, 21.4.2021 COM(2021) 206 final 2021/0106(COD)).
* Nuno Cunha Rodrigues
Professor Associado da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa
Cátedra Jean Monnet