Observatory on European Studies - Desglobalização na pauta do Fórum Econômico Mundial e a guerra na Ucrânia

2022-08-29

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Joana Stelzer*

Thyago de Pieri Bertoldi**

Michelle de Medeiros Fidélis***

O Fórum Econômico Mundial, organização internacional destinada à cooperação público-privada, realiza encontros anualmente e também se volta à construção de cooperação público-privada. Com isso, objetiva engajar líderes políticos, econômicos, culturais e de outras áreas na construção de políticas públicas globais, regionais e industriais. Depois de dois anos sem reuniões presenciais, em decorrência da pandemia de Covid-19, em 22 de maio de 2022 teve início sua 51ª edição, em Davos, na Suíça. Conforme esperado, neste ano, com o banimento dos russos e a tímida participação chinesa, o evento foi marcado pela forte oposição dos participantes à ação bélica da Rússia contra a Ucrânia. Dentre os temas discutidos, estavam os impactos desse conflito armado no processo da chamada (des)globalização. 

Enquanto a concepção da globalização representa o processo de aumento do fluxo internacional de capitais e a ampliação do comércio internacional, a (des)globalização parte da ideia de diminuição do fluxo de interdependência entre os países, inclusive quanto aos processos de regionalização orientados pela Teoria da Integração Econômica. Embora várias ondas globalizantes tenham sido verificadas durante o curso da história mundial, é possível afirmar que a mais recente ocorreu com a queda do regime soviético e as reformas econômico-liberalizantes nos Estados Unidos, Reino Unido e, também, na China. Igualmente fundamentais para viabilização do processo de integração entre países foram as transições democráticas ocorridas na América Latina a partir da década de 1980, a consolidação do mercado único na União Europeia (1993), com adoção do Euro (2002), entre outros significativos movimentos.

Estabeleceu-se, de forma progressiva (e ininterrupta?), as bases para criação de cadeias globais, facilitando o fluxo internacional de capitais e o incremento do comércio mundial (com reflexo de crescimento variável entre economias ditas desenvolvidas e em desenvolvimento). Os justificados ‘benefícios’ da globalização sempre pairaram como quimera para os países marginais. Todavia, há quem defenda que uma série de acontecimentos recentes vêm indicando arrefecimento (ou mesmo reversão) desses processos: a chamada desglobalização (ou fragmentação).

Aos defensores da crença do fim da era do mundo globalizado, o fenômeno começa a ser percebido após a grave crise do subprime (2008), que reduziu o ritmo de desenvolvimento econômico global. Com o descontentamento econômico de parte da população que lhe arrebatou a idolatria pelo mercado, assistiu-se ao crescimento do populismo, do nacionalismo e do protecionismo em diversos países ocidentais. Sob tal ímpeto, registram-se dois notórios movimentos: a eleição de Donald Trump, nos Estados Unidos, em 2016; e, o Brexit, com a saída do Reino Unido da União Europeia, em 2020. Veio, então, a pandemia de Covid- 19 que causou uma reestruturação nas cadeias de abastecimento (do modelo just in time para manutenção de estoques). Antes da recomposição das cadeias globais, contudo, emergiu  a invasão russa à Ucrânia que, a par do desastre humanitário, comprometeu a exportação de bens e serviços por esses países. Tal circunstância abalou o fornecimento de energia da Rússia à Europa e, com isso, a escalada de preços nos alimentos e na energia em todo o mundo.

O somatório dessas e outras circunstâncias fizeram com que a (des)globalização entrasse na pauta da 51ª edição do Fórum Econômico Mundial. O tema foi tratado em entrevista com Thomas Friedman, jornalista e pioneiro em enxergar e definir a “nova globalização”. O articulista da Foreing Affairs e do New York Times, rendeu comentários nos meios acadêmicos e profissionais quando defendeu que a Guerra na Ucrânia não colocará fim na globalização, ao sustentar o fenômeno de integração mundial como não linear. Dito de outro modo, a globalização movimentar-se-ia de forma curvilínea, ondular, com altos e baixos durante a história. Com base nesse conceito, Thomas Friedman foi categórico: se a Primeira ou a Segunda Guerra Mundial não sepultaram definitivamente a globalização, não seria a Guerra da Ucrânia a fazê-lo.  

De fato, embora algumas ideias de Thomas Friedman sejam passíveis de crítica sob a ótica decolonial, os eventos históricos dão sustentação à tese do autor: o processo de globalização intercala períodos de euforia e descrença, crescimento e queda. A probabilidade maior é de que, após o fim da Guerra da Ucrânia, um novo processo de maior integração e cooperação global seja iniciado como resposta aos problemas vivenciados nas crises anteriores. Em 2010, o Fundo Monetário Internacional (FMI) já alertava para a dita ‘geometria variável do crescimento’, na qual há um fosso entre duas dinâmicas e distintas velocidades de retomada de crescimento entre os países, marcadamente desenvolvidos e em desenvolvimento. As diferenças entre riquezas já existentes, por sua vez, tendem a se tornar ainda mais agudas.

Contudo, talvez o ceticismo em torno do renascimento do movimento da globalização decorra da cumulação de crises vivenciada contemporaneamente, afinal, no curso da pandemia de Covid-19 é deflagrado um conflito armado na Europa. Ademais, o excesso de informação (ironicamente, um dos frutos da globalização) ao qual se é submetido potencializa o pessimismo em relação às consequências negativas das crises.

De toda forma, os ciclos de ascensão e queda do processo de globalização oferecem uma oportunidade para repensar o processo, a partir das reivindicações da sociedade atual. É inequívoco que a globalização gerou benefícios para a economia mundial (um deles, a redução de preços de bens e serviços), mas esses efeitos não foram equitativamente distribuídos entre todos os participantes. O novo ciclo de globalização emerge como oportunidade que deveria ser construída a partir de elementos de sustentabilidade ambiental, social e econômica. Poder-se-ia, sob tal aspiração, incorporar noções de Comércio Justo às trocas internacionais de forma cotidiana; abandonar as práticas de excessiva financeirização da economia; utilizar as estruturas para alocação em projetos que efetivamente criam valor e geram bem-estar; investir em medidas para diminuir as disparidades sociais globais e a evasão fiscal pelos grandes conglomerados empresariais; frear o neoextrativismo e a exploração predatória de recursos naturais; dentre diversas outras medidas. União Europeia e América Latina, por sua vez, poderiam exercer papel fundamental no cenário de resgate da cooperação entre países e de reconstrução da comunidade global, inclusive pelo histórico de diálogo e amizade que os caracteriza.

Consistindo em um dos mais relevantes players do cenário econômico-político mundial, a União Europeia tem em suas mãos a tarefa de desenvolver as bases das políticas para melhora qualitativa nas relações que envolvem o bloco econômico e/ou os países que o integram.  Os objetivos da Agenda Estratégica para a União Europeia 2019-2024 já demonstram a preocupação quanto à proteção de liberdades individuais e da promoção de uma Europa social e economicamente sólida, justa e sustentável. Cabe ao bloco econômico modelar suas relações político-comerciais com base nesses valores, de modo a estimular (e não impor) outros países a seguirem o mesmo caminho. Nesse contexto, exigências como a proibição de entrada no bloco de produtos associados a trabalhos forçados – idealizada pela Comissão Europeia em forma de Diretiva –  tende a impactar de forma positiva as cadeias globais de valor.

Por seu turno, a América Latina exerce papel fundamental na promoção da equidade no novo ciclo de integração. Em linha com o previsto no documento ‘Globalização e desenvolvimento’ da Comissão Econômica para a América Latina das Nações Unidas (CEPAL/ONU), a agenda global dos países latino-americanos deve incluir demandas pela inclusão da migração nos fóruns de discussões internacionais, pelo estímulo aos direitos sociais, econômicos e culturais (a região comporta um dos cenários mais ricos e plurais de comunidades do mundo) e pela defesa da estabilidade macroeconômica e financeira mundial, na busca da erradicação da atividade especulativa do mercado financeiro, que nada mais faz do que distribuir as externalidades negativas da financeirização às populações mais vulneráveis. A América Latina, ainda, deve ser responsável por liderar a comunidade global na busca pelo desenvolvimento sustentável, apresentando ao mundo sua concepção ecologizada do instituto.

Conforme defendido por Thomas Friedman, a Guerra da Ucrânia muito provavelmente não levará ao fim da globalização. Por outro lado, o momento de ceticismo em relação à integração e à cooperação global oferece a oportunidade de repensar as consequências negativas da globalização, de modo a incorporar elementos de sustentabilidade ao processo. A cooperação sempre foi a resposta mais adequada para a solução dos grandes problemas mundiais e, nesse processo de reconstrução da comunidade global, União Europeia e América Latina desenvolverão papeis chaves.

Diante desse cenário, ou seja, de como enfrentar os feitos decorrentes de um novo processo de globalização, é necessário repensar as políticas comerciais, tornando-as realistas, pragmáticas, equilibradas, inclusivas, coerentes e alinhadas com políticas de outras áreas. O realismo e o pragmatismo ocorre justamente ao avaliar se a liberalização comercial é hábil para alcançar crescimento econômico global ou como meio para combater a recessão econômica. A coerência e o alinhamento necessitam pautar as políticas comerciais, aprofundando o que é realmente comércio, pois por intermédio das trocas internacionais pode-se conquistar justiça(s) em diversas áreas. Vale dizer, comércio é meio, mas as diretrizes para os diversos fins que se pretende alcançar é o mercado que vai ditar. A oportunidade para mudar as regras chega de maneira auspiciosa ao Fórum Econômico Mundial, mas viabilizar a mudança, isso já não depende do Fórum, mas da mente dos líderes. ‘Deixa estar’ revela profunda incompreensão do fenômeno mundial do qual os Estados fazem parte.

 

* Joana Stelzer

Doutora em Direito na UFSC. Professora Associada III e credenciada na Pós-Graduação em Direito para Mestrado e Doutorado na UFSC.

 

** Thyago de Pieri Bertoldi

Mestrando em Direito Internacional, Econômico e Comércio Sustentável na UFSC. Advogado da União.

 

*** Michelle de Medeiros Fidélis

Assistente na Procuradoria Cível (MP/SC). Mestranda em Direito Internacional, Econômico e Comércio Sustentável na UFSC. Pós-graduada em Jurisdição Federal na ESMAFESC.