Observatory on European Studies - A Conferência sobre o futuro da Europa, primeira experiência de democracia participativa europeia

2022-08-25

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Naiara Posenato*

Temas cruciais e desafios para o futuro foram abordados em conformidade a modelo deliberativo já adotado em diversos países latino-americanos, e o contexto internacional pode favorecer reformas. 

No dia 9 de maio passado, em ocasião do aniversário da União Europeia (#Europeday), foi concluída oficialmente em Estrasburgo a Conferência sobre o futuro da Europa. Nesta data houve a entrega de um Relatório final, com 49 propostas além de 326 medidas específicas, aos Presidentes do Parlamento europeu, do Conselho e da Comissão europeia. Um mês depois, no dia 17 de junho, a Comissão europeia adotou uma Comunicação onde expõe as formas com as quais pretende dar seguimento aos resultados obtidos, fornece um panorama das próximas etapas e cogita sobre a melhor forma de incorporar o instrumento da democracia participativa na política e no processo legislativo da UE.

Tratou-se de uma iniciativa inovadora de democracia participativa, interinstitucional e transnacional inaugurada oficialmente há exatamente um ano, em 2021, por iniciativa comum das três instituições, com a finalidade de dar novo espaço aos cidadãos para a discussão de temas prioritários e desafios para o futuro da União Europeia. Em uma Declaração Conjunta de março de 2021, tais instituições também se comprometeram a dar seguimento às propostas apresentadas, dentro da respetiva esfera de competências e em conformidade com os Tratados.

Do ponto de vista histórico, a necessidade de relançar o projeto europeu e refletir sobre o seu futuro não é inédita, mas justifica-se após um decênio de dificuldades, que viu o subseguir-se de crises como a crise migratória ou do estado de direito, e de desafios inéditos como a Pandemia Covid-19 e, por último, da guerra Russa-Ucraína.

Os trabalhos da conferência disseram respeito a nove temas fundamentais:  alterações climáticas e ambiente; saúde; uma economia mais forte, justiça social e emprego; a UE no mundo; valores e direitos, Estado de direito, segurança; a transformação digital; a democracia europeia; a migração; educação, cultura, juventude e desporto.

A Conferência foi estruturada como um processo configurado segundo o modelo bottom-up, centrado nos cidadãos. Também previu a utilização de uma plataforma digital interativa e multilinguística, instrumento digital inovador aberto a participação dos cidadãos, da sociedade civil em geral e de entidades públicas, além da realização de diversos eventos e debates organizados em diferentes níveis (europeu, nacional, transnacional, regional). Quatro relatórios parciais de síntese dos trabalhos foram apresentados para apresentar de forma sistematizada as contribuições recebidas durante o período anual de funcionamento da plataforma.

A participação da sociedade europeia através da plataforma online aplicou, pela primeira vez na história das instituições europeias, um modelo de democracia participativa, com o envolvimento direto e difuso dos cidadãos, sem intermediações, na administração pública. É sabido que tais experiências já foram colocadas em prática em diversos países latino-americanos, por último tendo caracterizado o processo constitucional chileno atuado através da inovadora Convención Constitucional, que viu há poucos dias, em 4 de julho último, o ato simbólico de entrega ao atual governo do país da proposta de uma nova Constituição democrática. Tal modelo deliberativo também tem sido recentemente atuado no âmbito de alguns debates nacionais europeus como por exemplo na França, em tema ambiental, com a Convention Citoyenne pour le Climat, na Irlanda, com a Irish Citizens’ Assembly (ICA).

Com base na Declaração de março de 2021, a coordenação dos trabalhos da Conferência pelo futuro da Europa foi realizada por um Comité executivo, formato por representantes dos órgãos de vértice europeus. Ademais, um papel fundamental na discussão das propostas apresentadas pelos cidadãos foi desempenhado pela Assembleia plenária, órgão deliberativo formado por 449 membros, cuja complexa composição visando ampla representatividade dos órgãos europeus e nacionais, sem omitir as regiões. Também foram criados quatro painéis diversos no âmbito da Conferência, cada um composto por 200 cidadãos provenientes dos 27 países da União, formados segundo o princípio da proporcionalidade degressiva prevista para a eleição do Parlamento europeu.

Para a realização da plenária da Conferência, que aconteceu em 19 de junho em conclusão de 3 dias de discussão, foram constituídos grupos de trabalho correspondentes aos nove temas da Conferência, que auxiliavam na preparação dos debates e na formulação de propostas para a discussão, com base nas recomendações dos respetivos painéis de cidadãos a nível nacional e europeu e nas contribuições  apresentadas na plataforma digital multilingue.

Os trabalhos foram concluídos com a apresentação, como mencionado, de 49 propostas e de mais de 300 medidas detalhadas divididas entre os nove temas da conferência, que incluem uma integração mais profunda da UE nas políticas climáticas, sociais e de saúde e a passagem da votação por unanimidade para a maioria no Conselho em todas as áreas políticas. Alguns dos temas cruciais, no entanto, exigiriam a realização de uma revisão dos Tratados, em vista da superação da lógica intergovernativa a favor de uma maior integração (como dar ao PE o direito de iniciativa legislativa ou tornar a política de saúde uma competência compartilhada).

É complexo avaliar todo o processo nesta fase. Sem dúvida, a experiência da democracia participativa na Europa pode ser considerada em todo caso positiva, porque favorece a aproximação ativa dos cidadãos, e dentre eles dos jovens, ao contexto europeu (inclusive institucional). É sabido porém, que este tipo de instrumento, é menos eficaz quando aplicado em escala continental ou para a discussão de questões mais técnicas.

Em todo o caso, o momento histórico pode ser favorável a mudanças: o conflito na Ucrânia expôs de forma drástica muitas deficiências da UE, demonstrando por exemplo que os Estados-Membros não podem cumprir sozinhos questões fundamentais, como a segurança, e que em algumas áreas estratégicas não há uma cooperação suficiente. Em algumas áreas (como energia), eles não cooperam o suficiente para agir de forma eficaz. É possível que este horizonte favoreça o efetivo envolvimento das instituições europeias e aproxime as posições políticas do Conselho e da Comissão, mais cautas em termos de reforma, às do Parlamento europeu.

O primeiro conjunto de novas propostas concretas será anunciado no constumeiro discurso da Presidente da Comissão, Ursula von der Leyen sobre o estado da União, que vai acontecer em setembro próximo.

*Naiara Posenato

Professora de Direito Comparado na Università degli Studi di Milano, Itália.

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