Observatory on European Studies - Da guerra internacional (de Rússia e Ucrânia) à guerra transnacional (de todos nós)
Joana Stelzer*
Marjorie Tolotti Silva de Mello**
Thyago de Pieri Bertoldi***
Vive-se em pleno século XXI, momento no qual se encontram (quase) consolidados a construção e o assentamento de um Estado de Bem-Estar Social, além dos esforços pela aquisição de direitos e garantias fundamentais, dignidade da pessoa humana e solidificação de diretrizes e parâmetros internacionais como soberania e cooperação internacional. Da aparente estabilidade histórica, irrompe uma crise, pautada por uma guerra de proporções significativas (políticas, econômicas e jurídicas) e por intermédio da qual se retomou o questionamento acerca da solidez do Direito Internacional: a guerra entre Rússia e Ucrânia. Mas, será a ótica do Direito Internacional a única vertente de análise possível? Sob tal dúvida, o foco dessa discussão gira em torno de debater dois ângulos de vista: (I) o desrespeito aos parâmetros basilares de Direito Internacional, como a soberania; e, (II) a guerra transnacional, que extrapola os limites conceituais do Direito Internacional e que coloca a pessoa humana no centro do debate.
Apesar da soberania dos Estados, algumas perguntas se impõem no Direito Internacional contemporâneo: até que ponto medidas jurídicas realmente efetivas podem ser tomadas para solucionar a violência física, moral e psíquica ocorrendo com populações em condição de vulnerabilidade? Seria preciso seguir a rigor o protocolo de votações e modelo de intervenção da ONU (Organização das Nações Unidas) ante a gravidade da situação? Num primeiro momento, cumpre analisar o Estado como sujeito originário de Direito Internacional ou, ainda, como elemento vinculado à própria consolidação da sociedade internacional. O Estado é sujeito de direitos e deveres, pois sua atuação se perfaz especialmente por meio de tratados e outros acordos internacionais, dotando-o de autonomia. A formação e o entendimento do Estado à luz do Direito Internacional emergem de três pressupostos/elementos constitutivos indispensáveis, que foram elencados pela Convenção de Montevidéu sobre Direitos e Deveres dos Estados, de 1933: território, povo e governo soberano (além, por óbvio, da lógica Westfaliana).
Também é de se situar que a tensão das relações internacionais entre Rússia e Ucrânia guarda compatibilidade com um passado não tão remoto, quando, em 2014, houve uma tentativa de anexação da província da Criméia (Ucrânia) pela Rússia. Nesse sentido, a atuação da OTAN (Organização do Tratado do Atlântico Norte) contra a Rússia é verdadeiramente conflituosa, pois se acentua justamente no contexto de estabelecimento da segurança europeia, dito de outro modo, resposta norte-americana à ameaça do fortalecimento e expansão dos blocos socialistas. Consequentemente, o conflito se intensificou após a integração dessa província à Federação Russa, fato que ocorreu no auge da crise política ucraniana, caracterizada por conflitos internos e manifestações violentas da população local contra o acordo assinado entre os governos ucraniano e russo. A movimentação política rendeu, em 2015, um documentário intitulado Winter On Fire: Ukraine’s Fight for Freedom, o qual contextualiza o ano em que os conflitos entre Rússia e Ucrânia surgiram e se intensificaram. Inevitavelmente, o atual conflito entre Rússia e Ucrânia expõe e denuncia as relações conflitantes entre os poderes constituídos nacionais, o apoio hesitante da população ao presidente russo e, em termos finais, os custos transferidos da guerra na forma de inflação, o declínio da economia e as mortes. Fica o rastro da brutalidade de uma crise e a tensão que (toda) a guerra ocasiona.
A atenção de terceiros países para a Ucrânia concentra-se em intensificar o auxílio humanitário e a suposta defesa armada. A polarização resgatada do cenário da Guerra Fria se repete: trata-se de disputa entre Rússia de um lado, representando o desejo incansável de retomar a histórica União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS); e, Ucrânia de outro, representando o mundo ocidental, com um apoio da OTAN vacilante, que representa a aliança militar dos Estados Unidos (embora o auxílio tenha se dado somente impondo sanções e restrições econômicas à Rússia).
Os planejadores estratégicos da OTAN, na análise de resolução parecem ter um método: a interferência deve evitar que a Rússia recorra ao uso de armas nucleares táticas de curto alcance, além de impedir que o conflito se espalhe para além das fronteiras da Ucrânia. Mas, tais hipóteses são apenas especulativas. Na prática, países como França, Estados Unidos, República Tcheca e outros aliados têm fornecido a Kiev peças de artilharia. Combater a ofensiva de Moscou na região oriental de Donbas surge como simulacro da crise real.
No que diz respeito à soberania, caracteriza-se como poder de declarar, em última instância, a validade do direito dentro de um determinado território. Tecnicamente, o ente estatal atua dentro de limites internos estabelecidos pela ordem jurídica nacional; e, externamente, pelo Direito internacional. A diretriz básica pauta-se pela igualdade jurídica soberanas e não intervenção. A Carta das Nações Unidas (Decreto n. 19.841/45), por sua vez, orienta que as partes envolvidas que possam constituir verdadeira ameaça à paz e à segurança internacionais, procurarão chegar a uma solução por negociação. No plano teórico, as regras são claras: antes de dar início a uma intervenção com forças armadas, existe uma multiplicidade de ferramentas à disposição dos países membros da Carta da ONU (e, da OTAN para seus membros). Diante deste cenário, a invasão da Ucrânia pela Rússia revela flagrante desrespeito aos basilares elementos constitutivos do Direito Internacional, o atributo da soberania; e, escancara o que há de mais brutal nas relações internacionais. O cenário da guerra clássica, por outro lado, deflagra as relações internacionais a um patamar de indiferença e desrespeito ao mais basilar elemento de um conflito: o ser humano e sua dignidade.
Com efeito, há uma outra guerra em andamento, agora, sob o espectro transnacional. Historicamente, o fenômeno lança luz sobre um emergente cenário mundial, que decorreu essencialmente da intensificação das atividades econômicas após a Segunda Guerra, mas que também alertou sobre a dignidade humana como aspecto elementar de convívio. Enquanto o Direito Internacional Público pauta-se pelo reforço da ideia soberana, o fenômeno da transnacionalidade evidencia a decadência da soberania enquanto conceito que busca respaldar o respeito a determinado território e povo. O desgaste conceitual da soberania está intimamente ligado com a globalização e pode ser vislumbrado nos movimentos de integração regional, a exemplo da União Europeia. Com efeito, a supranacionalidade tinha – na sua origem – objetivo de limitar a soberania interna e externa dos Estados-membros
Paralelamente à violência da guerra em si, portanto, há conflitos de natureza transnacional que desafiam os Estados, como o tráfico de pessoas, a insegurança alimentar, o tráfico de drogas, a lavagem de dinheiro, o tráfico de armas de fogo, a comercialização da vida animal e vegetal, o contrabando de bens culturais, entre outras situações. Assim, o agravamento das relações políticas, sociais e econômicas entre os países em guerra, acaba por contribuir para o cenário bárbaro mundial. Agrava-se, igualmente, a pandemia, eis que o embate eclodiu em mundo de incertezas e desestruturação das condições sanitárias.
Com isso, a comunidade mundial assiste atônita o cenário de destruição da soberania estatal pelo estado de guerra; e, também, percebe a própria debilidade na contenção das manifestações afirmativas da transnacionalidade, como os crimes humanitários, o sofrimento de crianças, de animais (inclusive domésticos), de idosos, de gestantes, e de pessoas em situação de vulnerabilidade. Perplexas, as pessoas contemplam o ruir do suposto império de segurança internacional.
A globalização, o imperialismo, a multinacionalização, a internacionalização e a transnacionalização são todos fenômenos complexos que alçaram as relações globais a um novo patamar, na qual a soberania dos Estados confessa seus limites quando colide com os direitos que asseguram a dignidade humana. Ao final, o conflito pode ser interpretado com influências duplamente envenenadas: I) (a) os velhos ideais adormecidos pela Guerra Fria e a tentativa de dominação territorial, poderio econômico, político e ideológico, de um lado, pela ex-União Soviética, com narrativa socialista; e, de outro, (b) a OTAN, ao flertar com interesses europeus e estadunidenses, de hegemonia capitalista; e, II) a emergência do fenômeno da transnacionalidade, que ainda não conseguiu assentar completamente suas raízes, mas demanda soluções da sociedade civil além-fronteiras.
O cenário aponta para uma mudança sistêmica nos dois modelos (internacional e transnacional), que ambiciona alternativas de solução. Pelo lado do Direito Internacional, é fundamental a cooperação internacional e as estratégias a serem traçadas no Conselho de Segurança, além de uma revisão das medidas de coerção a serem adotados pela ONU, e até mesmo de seu próprio escopo de atuação, competência, valores e missão. Por outro, existe uma miríade de atores, como Organizações Não Governamentais Internacionais (ONGI), movimentos civis e religiosos, Corporações Transnacionais e a própria Pessoa Humana, que reivindicam um papel ativo, acessório ou principal, na tentativa de resolução do contemporâneo conflito. Ao que parece, a garantia de uma governança global não virá, igualmente não virão nem regras, nem leis e nem procedimentos; não virá alguém para salvar as pessoas delas mesmas, porque o modelo do Direito Internacional é decadente e não serve/servirá em futuro breve. Agora, será a vez da transnacionalidade erguer suas alternativas, sua ajuda humanitária e, até mesmo, sua resposta para a progressiva debilidade soberana. Parafraseando Maria Homem (FOLHA DE SÃO PAULO, 22/05/2022), “seja exercendo a mentira e criando montagens, [...] por favor, deixem a nossa liberdade em paz. Queremos comprar, vender, ‘descomprar’ e recomprar todos os brinquedos, em todos os espaços, e usufruir de tudo e de todos. E não venha nos encher o saco com regulações, limites, leis, e essas palavras fora de moda no mundo futuro que estamos tramando.” Se esse é o futuro, precisamos entender melhor as próprias guerras, pois também delas virão as respostas que a dignidade humana universal, de natureza transfronteiriça (e não de cunho nacional ou internacional) anseia.
* Joana Stelzer
Doutora em Direito na UFSC. Professora Associada II e credenciada na Pós-Graduação em Direito para Mestrado e Doutorado na UFSC.
** Marjorie Tolotti Silva de Mello.
Graduada em Direito - UNIVALI. Pós-Graduanda em Direito Ambiental e Urbanístico PUC-MG. Mestranda em Direito Internacional, Econômico, e Comércio Sustentável pela UFSC.
*** Thyago de Pieri Bertoldi
Advogado da União. Mestrando em Direito Internacional, Econômico e Comércio Sustentável pela UFSC. Pesquisador da Escola da AGU e do UniCuritiba