Observatory on European Studies - A TRANSFORMAÇÃO DA AUTORIDADE NACIONAL DE PROTEÇÃO DE DADOS BRASILEIRA EM AUTARQUIA: UM PASSO RUMO À ZONA DE LIVRE TRÂNSITO DE DADOS PESSOAIS COM A UNIÃO EUROPEIA
Aline Beltrame de Moura*
Em 14 de junho de 2022, foi publicado no Diário Oficial da União brasileiro, a Medida Provisória (MPV) n. 1124/22 que transforma a Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD) em autarquia de natureza especial, deixando de ser considerada um órgão da administração pública federal, integrante da Presidência da República.
Uma das grandes crÃticas à Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) brasileira (Lei nº 13.709/18) era a de que a ANPD, responsável por editar normas e fiscalizar procedimentos para proteção de dados pessoais, bem como aplicar sanções, estaria vinculada ao Executivo federal, não possuindo os requisitos para atuar com a independência necessária que as suas atividades exigiriam.
Recorda-se que a LGPD em seu artigo 55-A, § 1º, havia estabelecido que a estrutura inicialmente adotada pela ANPD seria provisória e que a mesma deveria ser reavaliada dentro do prazo de dois anos, contados da efetiva entrada em vigor da estrutura regimental da ANPD, isto é, 15 de outubro de 2022.
A transformação da sua natureza jurÃdica foi uma das ações estratégicas previstas no Planejamento Estratégico 2021-2023 da ANPD[1] e que culminou com a sua reestruturação em entidade da Administração Pública Federal Indireta, submetida à regime autárquico especial e vinculada à Presidência da República.
Na Exposição de Motivos da MPV, os senadores reforçam a necessidade de a ANPD ser redimensionada e fortalecida em sua estrutura, no seu quadro de pessoal, em seus processos e no seu orçamento. Alertam que o seu nÃvel de autonomia deve ser alterado a fim de atender as demandas de proteção de dados pessoais de modo coerente, satisfatório e adequado à s demandas da sociedade brasileira e das suas instituições, bem como à s exigências internacionais de conformidade e de legitimação[2].
Na prática a ANDP, passando agora a ser um órgão que compõe a Administração Indireta, começa a ter personalidade jurÃdica própria, autonomia administrativa, técnica e financeira, cabendo ao órgão da Administração Direta ao qual está vinculado, no caso a Presidência da República, supervisionar suas ações para assegurar a realização dos objetivos estabelecidos quando de sua constituição.
Essa transformação da sua natureza jurÃdica é uma resposta à forte resistência que diversos setores inicialmente manifestaram ao fato de a ANPD ter sido, inicialmente, vinculada ao Poder Executivo e, com isso, ter sido classificada como inadequada aos propósitos de independência do órgão[3]. Além disso, também existiam muitas crÃticas no sentido de que tal estrutura implicava sua desconformidade aos requisitos exigidos pelo sistema europeu de proteção de dados[4], impedindo a obtenção de Decisão de Adequação concedida pela Comissão Europeia.
A Decisão de Adequação é o mecanismo previsto no artigo 45 do Regulamento Geral sobre a Proteção de Dados (Reg. UE n. 2016/679 - GDPR) que permite a concessão da autorização para a livre transferência de dados pessoais da União Europeia para Estados terceiros, um território ou segmentos econômicos especÃficos deste paÃs, ou organizações internacionais, sem a necessidade de autorização especÃfica.
Em outras palavras, por meio da Decisão de Adequação a Comissão Europeia reconhece que o Estado terceiro ou a organização internacional assegura um nÃvel de proteção adequado aos dados pessoais e que, consequentemente, os dados dos residentes europeus eventualmente transferidos estarão resguardados, acarretando o estabelecimento de uma zona de livre trânsito de dados pessoais entre os Estados-Membros e o Estado terceiro ou a organização internacional.
Na prática, estes passam a gozar de benefÃcios econômicos e procedimentais garantidos por meio da Decisão de Adequação que supera, inclusive, eventuais barreiras não tarifárias existentes no relacionamento com as instituições e os estabelecimentos situados dentro do mercado único europeu, espaço onde pessoas, bens, serviços e capitais podem circular livremente.
Porém, um dos elementos essenciais para a concessão da Decisão de Adequação é justamente que o Estado terceiro ou organização internacional tenha criado uma autoridade de controle habilitada a desempenhar as suas funções e a exercer os seus poderes com total independência, situação que poderia ser questionada diante da configuração inicial da ANPD brasileira.
Portanto, a autonomia administrativa da ANPD, garantida agora pela Media Provisória, terá o condão de trazer maior confiabilidade ao sistema regulatório brasileiro de proteção de dados, bem como maior compatibilidade frente a outros sistemas regulatórios. Nesse sentido, assegurar maior independência à ANPD poderá facilitar o acesso do Brasil em blocos econômicos e em grupos internacionais de relevância, tais como a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) e a zona de livre trânsito de dados pessoais com a União Europeia, importante parceiro comercial do nosso paÃs.
Quanto à tramitação legislativa da MPV, segundo o artigo 62 da Constituição Federal brasileira, as Medidas Provisórias são normas com força de lei editadas pelo Presidente da República em situações de relevância e urgência. Apesar de produzirem efeitos jurÃdicos imediatos, as MPVs precisam da posterior apreciação pelas Casas do Congresso Nacional, Câmara e Senado, para que se convertam definitivamente em lei ordinária[5].
Portanto, a Medida Provisória (MPV) n. 1124/22, que já está em vigor, precisa agora ser analisada pelos plenários da Câmara dos Deputados e do Senado para se tornar lei em definitivo.
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[1] BRASIL. Autoridade Nacional de Proteção de Dados. Planejamento Estratégico 2021-2023. BrasÃlia, 2021. p. 09. DisponÃvel em: https://www.gov.br/anpd/pt-br/documentos-e-publicacoes/planejamento-estrategico/planejamento-estrategico-2021-2023.pdf. Acesso em: 20 jun. 2022.Â
[2] Exposição de motivos da Medida Provisória (MPV) n. 1124/22.
[3] BRASIL. Câmara dos Deputados. Especialistas defendem independência da Autoridade Nacional de Proteção de Dados: Assunto foi debatido em audiência pública promovida pela comissão mista que analisa a MP 869/18. Câmara dos Deputados, BrasÃlia, 09 abr. 2019. DisponÃvel em: https://www.camara.leg.br/noticias/555237-especialistas-defendem-independencia-da-autoridade-nacional-de-protecao-de-dados/. Acesso em: 20 jun. 2022. Â
[4] BEZERRA. Maria Ruth Borges. Autoridade Nacional de Proteção de Dados Pessoais: A importância do Modelo Institucional Independente para a Efetividade da Lei. Caderno Virtual, IDP, v. 2, n. 44, abr/jun. 2019. p. 63. Â
[5] https://www.congressonacional.leg.br/materias/medidas-provisorias/entenda-a-tramitacao-da-medida-provisoria.
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* Aline Beltrame de MouraÂ
Professora da Universidade Federal de Santa Catarina, Brasil
Coordenadora do Jean Monnet Network "Bridge Project"
Coordenadora do Jean Monnet Module CCJ/UFSC