Observatory on European Studies - Sistemas judiciais eficazes e Europa: impacto da Pandemia de Covid-19 e independência judicial são os novos desafios

2022-06-07

Naiara Posenato*

Digitalização e acessibilidade podem ser melhoradas; no último ano a percepção da independência judicial entre o público em geral foi menor em mais da metade dos Estados-Membros.

No mês de maio de 2022 a Comissão europeia publicou o “Painel de avaliação da Justiça na União Europeia de 2022” (The 2022 EU Justice Scorebord), uma panorâmica anual que desde 2013 fornece dados comparativos sobre a eficiência, qualidade e independência dos sistemas judiciais dos Estados-Membros. Este ano, pela primeira vez, foi considerado o impacto da Pandemia de Covid-19 sobre a eficiência de tais sistemas judiciais. O estudo revelou, ademais, um dado preocupante: a percepção pública da independência judicial sofreu uma queda em mais da metade dos Estados analisados. 

O Painel de avaliação da Justiça na União Europeia faz parte da chamada “caixa de ferramentas da UE” para monitoração do Estado de Direito na União, sendo que as suas conclusões
contribuem para o relatório de 2022 da Comissão sobre o Estado de direito. Não realiza uma classificação global ou promove uma específica tradição jurídica, mas visa fornecer uma perspectiva de conjunto do funcionamento dos sistemas judiciais dos Estados-Membros com base em dados objetivos, confiáveis e comparáveis. Para tanto, baseia-se em informações obtidas através do Eurobarômetro, fornecidas pelos países e pela Comissão Europeia para a Eficiência da Justiça (CEPEJ) do Conselho da Europa, dentre outros. Assim, o Painel de avaliação da Justiça na União Europeia facilita a identificação das boas práticas e das insuficiências ou retrocessos nos sistemas judiciais dos Estados-Membros, o que por sua vez pode culminar em propostas e projetos específicos a nível nacional, eventualmente suportados pelas instituições da União.

A fim de corroborar à criação de um ambiente favorável aos cidadãos, às empresas e investimentos, os parâmetros considerados são relacionados a órgãos competentes e processos relativos a diversas matérias jurídicas (civil, comercial, administrativo e em alguns casos penal), e em áreas em que a legislação da União é aplicada. Os indicadores são relacionados aos três elementos considerados fundamentais para um sistema judicial eficaz: eficiência, qualidade e independência.

Um sistema judicial eficiente administra o próprio volume de casos e o seu acúmulo, e profere decisões sem atraso. No que concerne à eficiência, portanto, os dados dizem respeito à duração estimada dos processos, à taxa de resolução e ao número de processos pendentes. Para a edição deste ano, o Painel de Avaliação estendeu o processo de monitoração a fim de incluir a duração dos procedimentos adotados por autoridades administrativas em domínios específicos da legislação da UE, como por exemplo no âmbito do direito da concorrência e antritust, da propriedade intelectual, da defesa dos consumidores e branqueamento de capitais. Os resultados de 2022, que consideram os dados disponíveis desde 2012 e até 2020, nos processos cíveis, comerciais e administrativos, apontam para tendências na maioria dos casos positivas. No entanto, em 2020, para alguns Estados-Membros, os dados gerais mostram um impacto negativo na eficiência. É possível que tenha sido causado pela pandemia do COVID-19 e, portanto, seja de natureza temporária.

Acesso facilitado, recursos suficientes, digitalização e decisões claras contribuem para uma justiça de qualidade. Desta forma, os indicadores fundamentais da qualidade da justiça são a acessibilidade da justiça a cidadãos e empresas, em termos de informação e comunicação, inclusive digitalizada, os custos da justiça, métodos ADR e a existência de recursos financeiros e humanos adequados para a prestação judicial. A partir de 2022, também foram considerados os dados relacionados à acessibilidade da justiça a pessoas com deficiência e a crianças, assim como a eventual existência de garantias relacionadas a ações ou omissões de autoridades administrativas, como por exemplo eventuais danos sofridos por empresas durante o período do chamado “silêncio administrativo”.

O Painel de avaliação de 2022 revelou que enquanto em alguns Estados-Membros o elevado nível de digitalização do sistema judiciário permitiu um funcionamento dos tribunais e dos serviços do Ministério Público durante a pandemia de COVID-19, noutros o fechamento temporário dos tribunais levou a uma diminuição da eficiência, nomeadamente a nível tribunais de primeira instância. Neste sentido, ainda há margem para melhorias na digitalização dos sistemas de justiça, sobretudo em alguns Estados-Membros, para simplificar o acesso à justiça. Da mesma forma, o estudo demostrou que apenas metade dos Estados previram adaptações processuais (Braille ou linguagem gestual) para pessoas com deficiências. 

O terceiro e último parâmetro é a independência, elemento fundamental para um sistema de justiça eficaz, que decorre do princípio da proteção judicial efetiva, ex art. 19 do Tratado da União Europeia e do art. 47 da Carta dos Direitos Fundamentais da UE. A independência pode ser declinada em independência externa, relacionada a ausência de constrangimento hierárquico ou subordinação a qualquer outro órgão e a pressões (políticas, de natureza econômica, etc.) externas, e independência interna, garantia de equidistância das partes processuais. Dentre os indicadores para a independência considera-se a percepção da independência dos tribunais e juízes dentre público em geral e por parte das empresas. É sabido que a percepção da independência do poder judicial impacta positivamente nas decisões de investimento. Também foram levadas em conta, no Painel de avaliação da Justiça de 2022, a possibilidade de que os tribunais de vértice decidam por iniciativa própria sobre a coerência da jurisprudência dos tribunais inferiores e as eventuais garantias relativas ao trabalho temporário de juízes ou procuradores em cargos políticos (as chamadas portas giratórias).

Os dados demonstram que quase todos os Estados-Membros dispõem de medidas que compensam as empresas por eventuais perdas resultantes de decisões administrativas e os tribunais podem suspender tais decisões mediante pedido. Os  resultados neste parâmetro também apontam que a partir de 2016, a percepção do público em geral com relação a independência dos tribunais e juízes melhorou em 17 Estados-Membros da União Europeia.

Porém, desde o ano passado, a percepção pública da independência judicial diminuiu em 14 Estados-Membros e, em certos Estados-Membros, o nível de independência percebida permanece particularmente baixo. As principais razões que fundamentam esta leitura são interferência ou pressão do governo e dos políticos, assim como de interesses econômicos ou de outros interesses específicos.

Os resultados deste estudo, como dito, confluirão ao Relatório Geral da Comissão sobre o Estado de Direito e poderão ensejar recomendações específicas para os Estados-Membros. Estas últimas, sobretudo se relacionadas à aceleração para a transformação digital dos sistemas de justiça, poderão beneficiar-se de empréstimos e apoio financeiro com base no Mecanismo de Recuperação e Resiliência.

 

*Naiara Posenato

Professora de Direito Comparado na Università degli Studi di Milano, Itália.