OBSERVATORY ON EUROPEAN STUDIES __ BREXIT e o iminente “no-deal”?
Por Aline Beltrame de Moura*
Era 1º de janeiro de 1973 e o Reino Unido ingressava na então Comunidade Econômica Europeia (CEE), predecessora da União Europeia (UE). Os britânicos viviam um período de crise bastante acentuado. Internamente, detinham uma taxa de inflação que girava em torno dos 20% ao ano, no plano internacional, observavam a gradual perda do peso político da Commonwealth. O contexto mostrava-se propício para a decisão de ingresso no bloco europeu.
Contudo, não tardou um ano para que os britânicos iniciassem uma discussão sobre a permanência ou não na CEE. Logo após a vitória dos conservadores em 1974, o governo britânico decidiu renegociar as condições da sua participação no bloco e submeter o resultado a um plebiscito popular. O principal objetivo de James Harold Wilson, primeiro-ministro inglês, era reduzir as contribuições financeiras a serem pagas à CEE, porém outros pontos relacionados à economia, defesa, segura e paz futuras também estavam em xeque.
Embora as renegociações tenham sido formalmente rejeitadas pelos demais países, uma reunião acabou sendo realizada em Dublin, no início do ano de 1975, na qual os chefes de Estado e de governo da CEE acabaram acolhendo o pedido de diminuição do valor de contribuição financeira que havia sido solicitado pelo Reino Unido.
A aparente vitória do governo inglês não acalmou os ânimos internos e a insatisfação de alguns ministros quanto ao êxito das renegociações acabou levando à convocação de um plebiscito nacional sobre a permanência britânica no bloco. Com a pergunta "Você acha que o Reino Unido deve permanecer na Comunidade Econômica Europeia (CEE)?", os eleitores decidiram, por 67,2% dos votos, que eram a favor da continuidade. Apesar do resultado, o primeiro-ministro inglês renuncia ao cargo, menos de um ano após o histórico 5 de junho de 1975.
A tensa relação entre Reino Unido e o processo de integração europeu aprofunda-se no governo de Margaret Thatcher. Apesar de ter chegado ao poder com a promessa de reforçar os laços com a CEE, em pouco tempo começa a tecer ferrenhas críticas as políticas europeias e com a célebre frase “I want my money back” em Fontainebleau, no ano de 1984, o Reino Unido passa a ter um regime especial no tocante ao montante da compensação recebido em contrapartida às contribuições líquidas realizadas em favor do orçamento da Comunidade.
No famoso Discurso de Bruges em 1988 junto ao College of Europe, Thatcher é enfática ao se posicionar de modo contrário aos auspícios de uma integração europeia mais profunda em áreas como a da moeda única, da abolição dos controles nas fronteiras internas e da cooperação para a defesa. Qualquer ideia que implicasse perda de soberania era automaticamente rechaçada pela primeira-ministra e esse posicionamento duro contra Bruxelas foi uma das razões que motivou o próprio Partido Conservador a pressioná-la a deixar o poder em 1990.
O Brexit é visto por muitos hoje como uma das heranças da “Dama de Ferro”. Passados 41 anos do primeiro plebiscito em 1975, a história se repetiu. Com a vitória de David Cameron em 2015, o primeiro-ministro teve que cumprir com uma de suas promessas de campanha e, em 23 de junho de 2016, os ingleses foram convocados para um novo plebiscito sobre a seguinte questão: "O Reino Unido deve continuar a ser um membro da União Europeia ou deve deixar a União Europeia?".
Agora as críticas eram principalmente direcionadas à política migratória, ao controle das fronteiras, a economia e a soberania nacional. Embora com um resultado apertado, para o delírio dos eurocéticos, 51,9% dos britânicos votaram a favor da saída do bloco, enquanto 48,1% optaram pela permanência.
Com a autorização da população para deixar a UE, abre-se um precedente na história da integração europeia, pois, pela primeira vez, um Estado perderá o status de membro da organização. A decisão abriu um horizonte desconhecido na Europa. Incertezas sobre o futuro da relação bilateral pós-Brexit são agravadas por um certo amadorismo na condução do processo de “divórcio” por parte de Londres e Bruxelas.
Tensões e intensas negociações são travadas desde o “Leave” para que o processo de retirada fosse realizado de modo gradual e com o menor impacto possível para ambos. Oficialmente a saída do Reino Unido da União Europeia aconteceu em 31 de janeiro de 2020, após várias prorrogações, contudo o período de transição para o estabelecimento das novas regras que passarão a reger o relacionamento econômico e político anglo-europeu tem data de término para 31 de dezembro de 2020.
Durante o período de transição, o Reino Unido não é mais considerado Estado-membro da União Europeia, portanto, passa a deter o status de país terceiro. Enquanto tal, deixa de participar nos processos de decisão europeu e não possui mais representantes nas instituições, órgãos e organismos da União. Apesar disso, nada muda nesse período para os cidadãos, consumidores, empresas e investidores, pois a legislação europeia continua a ser aplicada, os acordos internacionais da União continuam valendo, as instituições europeias continuam à disposição dos cidadãos e residentes daquele país e o Reino Unido continua a participar dos programas e a contribuir para o orçamento da União.
Embora às portas do termo dessa fase transitória, os planos para o estabelecimento de uma ambiciosa associação entre União Europeia e Reino Unido parece estar cada vez mais longe de ser concretizado. Existe claramente a possibilidade que se chegue ao final desse período sem a ratificação de um acordo formal que discipline a relação futura de ambos.
Prevendo esse cenário de “no-deal”, a Comissão Europeia divulgou no último 10 de dezembro um conjunto de medidas de contingência que garantem, sempre com fundamento no princípio da reciprocidade e de modo provisório, uma conectividade área e rodoviária básica entre a UE e o Reino Unido, bem como a possibilidade de acesso recíproco de seus navios pesqueiros às águas uns dos outros, facilitando os procedimentos de autorização para as embarcações de pesca.
Um BREXIT sem acordo comercial certamente prejudicaria as economias do norte da Europa, desacelerando seu crescimento, teria repercussões nos mercados financeiros, dificultaria o atravessamento das fronteiras e causaria danos nas sensíveis cadeias de abastecimento que se estendem por toda a Europa e para além dela. Congestionamentos de caminhões com quilômetros de extensão já são vistos nas estradas inglesas em razão dos atrasos ou cancelamentos de contêineres nos portos do país, apenas uma das inúmeras consequências desastrosas e caóticas do BREXIT e da possibilidade cada mais real de um “no-deal”.
*Aline Beltrame de Moura
Professora da Universidade Federal de Santa Catarina, Brasil
Coordenadora do Jean Monnet Network "Bridge Project"
Coordenadora do Jean Monnet Module CCJ/UFSC