Kalil Drayton Bahury Moraes*
A República Italiana, uma das nações fundadoras da União Europeia, ocupa posição central no equilíbrio político e econômico do continente. Terceira maior economia da Zona do Euro, o país combina alta densidade industrial, forte setor de serviços e um complexo tecido agrícola e cultural que, embora represente pequena fração do PIB, possui enorme relevância identitária. Essa estrutura econômica diversificada e historicamente sofisticada explica o caráter ambivalente da postura italiana diante do Acordo União Europeia–Mercosul, um dos mais amplos tratados comerciais já negociados pelo bloco europeu [1].
A política externa da Itália, sob a liderança da primeira-ministra Giorgia Meloni, tem assumido perfil pragmático e estratégico. Embora alinhada aos compromissos comunitários da União Europeia, Roma adota uma lógica de defesa nacional que prioriza a proteção de setores sensíveis, notadamente o agrícola, em paralelo à promoção da competitividade industrial italiana no mercado global [4]. O governo Meloni, apoiado por uma coalizão de centro-direita, interpreta o comércio internacional como instrumento de poder e de projeção geopolítica, mas também como ameaça potencial à soberania produtiva caso não haja equilíbrio nas concessões.
A economia italiana é amplamente orientada para os serviços, responsáveis por aproximadamente 70% do PIB, enquanto a indústria representa cerca de 25% e mantém alto grau de especialização em segmentos como automotivo, químico, metalúrgico, de design e de bens de luxo. O setor agrícola, por sua vez, corresponde a apenas uma fração modesta da produção nacional, mas exerce papel simbólico e político de destaque. O “Made in Italy” agroalimentar é reconhecido mundialmente, e as 57 indicações geográficas protegidas — como o Parmigiano-Reggiano e o Prosciutto di Parma — não são apenas produtos, mas expressões da herança cultural e da identidade regional italiana [5].
Nesse contexto, a relação comercial com o Mercosul apresenta tanto oportunidades quanto riscos. Em 2023, o intercâmbio entre a Itália e os países do bloco sul-americano alcançou cerca de €13,7 bilhões, com superávit italiano de €7,7 bilhões. A pauta comercial é fortemente assimétrica: a Itália exporta bens de alto valor agregado e importa commodities agrícolas e minerais, como soja, milho e minério de ferro. Essa estrutura evidencia as vantagens comparativas italianas na indústria e, simultaneamente, expõe vulnerabilidades na agricultura — setor cuja sobrevivência depende de políticas de proteção e diferenciação de qualidade [1].
A discussão interna sobre o Acordo UE–Mercosul tem sido marcada por intenso debate entre dois polos de poder econômico. De um lado, a Confindustria, principal confederação da indústria italiana, defende a ratificação do tratado, estimando aumento de até 14% nas exportações italianas e argumentando que o acesso preferencial aos mercados latino-americanos impulsionaria a competitividade e a inovação industrial [2]. Essa visão industrialista enxerga o acordo como vetor de expansão geoeconômica e de fortalecimento do protagonismo europeu em uma região historicamente influenciada por Estados Unidos e China.
De outro lado, o setor agrícola e sindical vê o tratado com grande apreensão. Entidades como a Confederação dos Agricultores Italianos (CIA) e a Coldiretti alertam para os riscos da liberalização de 82% das linhas tarifárias agrícolas da União Europeia, o que permitiria a entrada de produtos do Mercosul a custos muito inferiores, frequentemente produzidos sob padrões regulatórios distintos — especialmente em relação a agrotóxicos, desmatamento e bem-estar animal [9]. Essa percepção de “concorrência desleal” reforça a mobilização política do campo e sustenta uma narrativa que associa o acordo à erosão das tradições agrícolas europeias e à ameaça à sustentabilidade social e ambiental do modelo produtivo italiano.
O governo de Giorgia Meloni tem buscado um ponto de equilíbrio entre essas pressões. A posição oficial da Itália evoluiu de uma postura cética para um apoio condicionado, atrelando a ratificação do acordo à inclusão de salvaguardas concretas de proteção agrícola, ambiental e comercial [8]. O ministro das Relações Exteriores, Antonio Tajani, defende o pacto como oportunidade estratégica de reaproximação com a América Latina e instrumento para reforçar a autonomia da Europa frente às tensões sino-americanas [6]. Contudo, o ministro da Agricultura, Francesco Lollobrigida, mantém discurso de cautela, reivindicando cláusulas de reciprocidade e mecanismos que impeçam a desestabilização dos mercados agrícolas europeus.
No Parlamento Europeu, a delegação italiana desempenha papel de destaque. Parlamentares dos grupos do Partido Popular Europeu (PPE) e dos Reformistas e Conservadores Europeus (ECR) têm se alinhado ao governo, defendendo que qualquer ratificação do acordo deve respeitar integralmente as normas sanitárias e ambientais da UE [7]. Já representantes do Partido Democrático (PD) e de setores liberais, embora favoráveis à integração econômica, reconhecem a necessidade de correções técnicas e de garantias institucionais. Essa convergência política entre Roma e seus eurodeputados tem fortalecido a posição italiana dentro do bloco, permitindo que o país atue como um dos principais negociadores da ala cautelosa, ao lado de França e Polônia — ambos tradicionalmente defensores de uma agricultura europeia regulada e sustentável.
Além das instituições formais, a posição italiana é moldada pela influência ativa da sociedade civil e dos grupos de interesse. O empresariado industrial mantém atuação sistemática junto às instâncias europeias, apresentando estudos técnicos que destacam os ganhos de produtividade e exportação decorrentes da abertura comercial. Em contrapartida, organizações agrícolas promovem manifestações públicas, campanhas de conscientização e pressão direta sobre os eurodeputados, associando a defesa da agricultura italiana à defesa da própria cultura nacional [9]. Essa dinâmica política interna revela uma Itália multifacetada, na qual as políticas de comércio exterior são, antes de tudo, reflexo de disputas domésticas complexas e da interação constante entre economia, identidade e poder.
Do ponto de vista estratégico, a diplomacia italiana sustenta sua posição sobre o Acordo UE–Mercosul em três pilares: defesa, negociação e concessão. O primeiro refere-se à proteção intransigente dos produtos agrícolas italianos, com exigência de cumprimento integral das normas europeias e salvaguardas automáticas em caso de distorções de mercado. A segunda dimensão, de negociação, envolve disposição para flexibilizar o acesso a setores industriais e tecnológicos, desde que haja garantias de reciprocidade [3]. Por fim, a terceira — a concessão — admite cotas tarifárias controladas para produtos sensíveis, como carne bovina e açúcar, em troca de vantagens concretas para a indústria italiana e de reconhecimento das indicações geográficas, que constituem o cerne simbólico do “Made in Italy” [5].
A retórica diplomática italiana combina pragmatismo econômico e identidade cultural. Em seus discursos, o governo apresenta o acordo como instrumento de afirmação europeia no cenário global, mas ao mesmo tempo reivindica a preservação dos valores de qualidade, tradição e sustentabilidade que caracterizam a produção italiana [5]. O país se posiciona como mediador entre a lógica liberal e a necessidade de regulação, defendendo uma globalização que respeite padrões éticos e ambientais. Esse discurso de “proteção civilizatória” confere legitimidade à sua postura e aproxima Roma de outras capitais europeias que adotam visões semelhantes.
No plano geopolítico, a Itália enxerga o Acordo UE–Mercosul como oportunidade de reforçar a presença europeia na América Latina, região estratégica para a diversificação das cadeias de suprimento e a consolidação de parcerias democráticas em um mundo cada vez mais multipolar [10]. Contudo, essa ambição é temperada por um senso de responsabilidade interna: a Itália busca garantir que a liberalização comercial não fragilize o equilíbrio econômico e social de suas regiões rurais, nem comprometa a coerência da política agrícola comum da UE.
Em síntese, a posição italiana diante do Acordo União Europeia–Mercosul é de apoio estratégico, mas condicionado e vigilante. Roma reconhece o valor econômico e diplomático do tratado, mas exige que ele seja compatível com os princípios da equidade e da sustentabilidade. A Itália atua, assim, como poder moderador dentro da União Europeia: defende a integração econômica e o fortalecimento da presença europeia no sul global, mas se recusa a fazê-lo à custa da desproteção de seus agricultores e da descaracterização de sua identidade produtiva. Mais do que uma simples posição comercial, o posicionamento italiano expressa uma concepção de Europa: uma Europa que busca ser aberta e competitiva, mas também protetora de seus valores, de suas tradições e de sua cultura produtiva. Nesse sentido, o caso italiano representa um microcosmo da própria tensão europeia entre o impulso à globalização e a necessidade de preservar a coesão interna. O Acordo UE–Mercosul, para a Itália, é não apenas uma oportunidade econômica, mas também um teste de coerência política e moral para o projeto europeu.
Referências
[1] BRASIL. Ministério das Relações Exteriores. Acordo de Parceria entre Mercosul e União Europeia – Sobre o Acordo. Brasília, 2025. Disponível em: https://www.gov.br/mre/pt-br/centrais-de-conteudo/publicacoes/declaracoes/acordo-de-parceria-entre-mercosul-e-uniao-europeia-sobre-o-acordo. Acesso em: 10 set. 2025.
[2] CONFINDUSTRIA. “Indústria italiana defende acordo entre Mercosul e UE.” Terra, 2025. Disponível em: https://www.terra.com.br/noticias/mundo/industria-italiana-defende-acordo-entre-mercosul-e-ue,115e4bddb16f79372ef0d10a66177a53np4b8w8y.html. Acesso em: 10 set. 2025.
[3] EUROPEAN COMMISSION. Q&A EU–Mercosur Partnership Agreement. Bruxelas, 2025. Disponível em: https://ec.europa.eu/commission/presscorner/detail/en/ganda_24_6245. Acesso em: 10 set. 2025.
[4] EUROPEAN UNION. Italy – EU Country Profile. Bruxelas, 2025. Disponível em: https://european-union.europa.eu/principles-countries-history/eu-countries/italy_en. Acesso em: 10 set. 2025.
[5] GOVERNO DA ITÁLIA. Statement by Palazzo Chigi on EU–Mercosur Agreement and Additional Safeguards to Protect European Farmers. Roma, 2025. Disponível em: https://www.governo.it/en/articolo/statement-palazzo-chigi-eu-mercosur-agreement-and-additional-safeguards-protect-european. Acesso em: 10 set. 2025.
[6] L’ITALIA È ANCORA FAVOREVOLE AL MERCOSUR, DICE IL VICEPREMIER TAJANI DOPO LA BOCCIATURA DI LOLLOBRIGIDA. S.I.Ve.M.P., 2025. Disponível em: https://sivemp.it/post_rassegna_stampa/litalia-e-ancora-favorevole-al-mercosur-dice-il-vicepremier-tajani-dopo-la-bocciatura-di-lollobrigida/. Acesso em: 10 set. 2025.
[7] RENEW EUROPE. EU–Mercosur Partnership Agreement: Renew Europe MEPs Welcome the Start of the Formal Ratification Process. Bruxelas, 2025. Disponível em: https://www.reneweuropegroup.eu/news/2025-09-03/eu-mercosur-partnership-agreement-renew-europe-meps-welcome-the-start-of-the-formal-ratification-process. Acesso em: 10 set. 2025.
[8] REVISTA OESTE. “Itália só apoia acordo UE–Mercosul se houver mudanças.” Revista Oeste, 2025. Disponível em: https://revistaoeste.com/mundo/italia-so-apoia-acordo-ue-mercosul-se-houver-mudancas/. Acesso em: 10 set. 2025.
[9] TERRA. “Agricultores italianos criticam acordo entre Mercosul e UE.” Terra, 2025. Disponível em: https://www.terra.com.br/noticias/mundo/agricultores-italianos-criticam-acordo-entre-mercosul-e-ue,10a32e6692d04ac4f23da8580a59c75duqv348ql.html. Acesso em: 10 set. 2025.
[10] TERRA. “Itália pode protagonizar Mercosul–UE, diz governo brasileiro.” Terra, 2025. Disponível em: https://www.terra.com.br/noticias/mundo/italia-pode-protagonizar-mercosul-ue-diz-governo-brasileiro,e5bbc5003c258a9203e45a6a49b6f97azian206y.html. Acesso em: 10 set. 2025.
*Kalil Drayton Bahury Moraes
Graduando de Direito pela Universidade Federal do Maranhão.