Nathan Hofmann*
A França consolida-se como um dos principais pilares econômicos e políticos da União Europeia (UE). Com uma população de aproximadamente 68 milhões de habitantes e o maior território do bloco, abrangendo 551 mil km², o país exerce uma influência desproporcional à sua área. Seu sistema político, de natureza presidencialista semiparlamentar e forte tradição republicana, lhe confere um papel central e de liderança no projeto europeu. Em termos econômicos, a França detém o segundo maior Produto Interno Bruto (PIB) da União, ficando atrás apenas da Alemanha, e desempenha um papel relevante no comércio intra-europeu e global. A base econômica é notavelmente diversificada: o setor de serviços responde por cerca de 70% do PIB, a indústria por 19% (com destaque para setores estratégicos como o automobilístico, aeroespacial, farmacêutico e químico), e a agricultura por 2%[1].
É justamente na agricultura que reside a maior sensibilidade política e econômica do país. A França é o maior produtor agrícola da UE, com forte produção de vinhos, cereais, laticínios e carnes. Consequentemente, este setor é rigorosamente protegido nas negociações comerciais, com ênfase na defesa das Indicações Geográficas Protegidas (IGPs).
Historicamente, a França é, ao lado da Alemanha, um dos “motores” e membro fundador da UE, o que se traduz em significativa influência nas instâncias decisórias, como o Conselho Europeu, o Parlamento e as negociações internacionais conduzidas em nome do bloco. Do ponto de vista social e diplomático, a França atua como uma defensora dos princípios fundamentais da UE, como a justiça social, a proteção ambiental, a sustentabilidade, o multilateralismo e a cooperação internacional, possuindo, entre os países do bloco, um forte posicionamento perante o Acordo com o Mercado Comum do Sul (Mercosul).
O Eixo Comercial com o MERCOSUL
O relacionamento comercial entre a União Europeia e o Mercosul é uma interseção complexa de interesses geopolíticos, sensibilidades domésticas e exigências regulatórias. O Acordo UE-MERCOSUL, negociado por mais de duas décadas, representa a potencial criação de uma das maiores zonas de livre comércio do mundo. Contudo, a relutância em ratificá-lo, principalmente por parte da França, reside em uma dilema central: o apetite por expandir a exportação de bens de alto valor agregado, e a necessidade de proteger o setor agrícola doméstico[2].
A participação da França no comércio com o Mercosul é relativamente limitada, representando menos de 3% do seu comércio total[3][4]. Essa baixa representatividade confere a Paris uma significativa margem de manobra para impor condições em nome de objetivos mais amplos, já que o interesse neste acordo seria maior do lado latino, permitindo que Paris exija mais condições em nome da defesa de seus setores, ou em busca de outros benefícios.
O cálculo estratégico com o Acordo
A assimetria na pauta comercial entre os blocos é a principal fonte de fricção. Setores tecnológicos, automobilísticos, químicos e farmacêuticos podem se beneficiar do acordo, com redução de tarifas, aumentando competitividade e empregos qualificados, por serem os principais bens exportados. Em contrapartida, a agricultura francesa teme a perda de competitividade, devido a majoritária presença de produtos agrícolas básicos e commodities como soja, carne bovina, aves e café[5] que são importados pela França.
Por outro lado, a frente das agroexportações de baixo custo do Mercosul, com riscos de desemprego rural e impactos sociais. ONGs ambientais alertam para possível aumento do desmatamento no Brasil, contrariando compromissos climáticos da UE. A opinião pública é cética, associando o acordo a riscos de desindustrialização e concorrência desleal, com forte cobertura crítica na imprensa.
A França exporta principalmente bens industriais e de alta tecnologia, como aeronaves, veículos, produtos farmacêuticos, químicos e tecnologia, que se beneficiariam imensamente da remoção das barreiras tarifárias do Mercosul.[6] O cerne da resistência francesa reside na proteção de sua potente, mas politicamente sensível, agricultura. Sendo o maior produtor agrícola da UE em valor, o setor teme ser inundado por commodities sul-americanas com custos de produção percebidos como mais baixos devido a padrões ambientais e sociais menos rigorosos[7]. O instrumento de defesa prioritário são as Indicações Geográficas Protegidas (IGPs), essenciais para preservar a identidade e o valor de produtos franceses de nicho como vinhos e queijos, no mercado global. Assim, a posição francesa é de defender o acesso de sua indústria ao Mercosul, impondo salvaguardas rigorosas para o seu agronegócio[8].
Posição oficial do Governo e do Parlamento Nacional
O governo Macron adota postura crítica e cautelosa, condicionando a ratificação ao cumprimento do Acordo de Paris e à proteção ambiental. Em um movimento politicamente calculado, Macron declarou publicamente, já em 2019, que a França não assinaria um tratado que incentivasse o desmatamento, vinculando diretamente o comércio à responsabilidade ecológica[9]. Essa retórica foi formalizada com o Relatório governamental de 2020, que recomendou a revisão do acordo, citando a ausência de salvaguardas ambientais suficientes. No Parlamento francês, o acordo é visto de forma crítica e indesejada, sendo criticado por todos os aspectos políticos do governo. O argumento central é a ameaça à agricultura[10], o descaso e falta com os compromissos climáticos da UE[11], gerando dumping social e ambiental, e ameaçando a agricultura francesa[12].
Os partidos de esquerda (La France Insoumise, Partido Comunista e Partido Socialista) rejeitam o acordo por razões ambientais e sociais[13]; já os de direita e centro-direita (como Les Républicains)[14] criticam a concorrência desleal para agricultores. Já o partido presidencial (La République En Marche) adota uma posição ambígua, reconhece benefícios comerciais, mas exige garantias ambientais robustas[15]. Essa oposição tem peso político suficiente para bloquear a ratificação.
No parlamento europeu, Eurodeputados franceses do Rassemblement National e La France Insoumise votam contra o acordo. O grupo dos Verdes/Aliança Livre Europeia, com forte presença francesa, também rejeita o texto por motivos climáticos. Deputados da Renew Europe condicionam apoio a garantias ambientais[16], enquanto Les Républicains pressionam contra concessões agrícolas[17]. A maioria dos representantes franceses no Parlamento Europeu alinha-se à posição crítica do governo, reforçando que o acordo, no formato atual, não é ratificável.
Atores da Sociedade Civil
A sociedade civil está bem mobilizada contra o acordo, com campanhas alegando, principalmente, o número de riscos de saúde aos consumidores de produtos provenientes do Mercosul. Um dos principais setores envolvidos na mobilização civil é o dos Sindicatos agrícolas, como a Federação Nacional dos Sindicatos dos Agricultores (FNSEA), que denunciam a concorrência desleal de carne, soja e açúcar do Mercosul, destacando padrões sanitários e ambientais menos rigorosos entre os países do bloco sul-americano em comparação à França. Diversas ONGs, como a Greenpeace, afirmam que o tratado poderia representar um aumento do desmatamento e dificultaria o cumprimento do Acordo de Paris[18]. Tal retórica é reforçada pela instabilidade política da região latinoamericana, com dificuldades já comprovadas durante a defesa do meio-ambiente durante o governo do ex-presidente do Brasil, Jair Bolsonaro, e agora, com a eleição do presidente negacionista, Javier Milei[19].
Por outro lado, associações empresariais enxergam com bons olhos o Acordou, e urgem pela sua assinatura. Isso ocorre devido a abertura de mercado, possibilitando que seis produtos de alto valor agregado, como carro, máquinas, motores, vinhos e bebidas, sejam comercializados com o Mercosul. O Movimento das Empresas da França (MEDEF) é o maior e mais influente sindicato de empregadores da França, representando a indústria, o comércio e os serviços, agindo como a antítese dos sindicatos agrícolas, defendendo os potenciais ganhos da ratificação dessa relação[20].
A grande prioridade é a proteção da agricultura francesa, especialmente carne bovina, aves e açúcar, com salvaguardas automáticas para limitar importações se houver desequilíbrio de mercado, não só devido a concorrência de mercado, mas pela sua produção ser barateada em comparação a produção europeia, ou a francesa, devido a condicionantes ambientais para a produção, e consequentemente para a obtenção dos subsídios agrícolas através da Política Agrícola Comum (PAC) da União Europeia, um mecanismo de financiamento aos agricultores. Rígidas medidas existentes na UE, e ausentes no Mercosul, permitem uma maior produção nos países latinos em comparação aos europeus.
O acordo deve incorporar cláusulas vinculantes para o cumprimento do Acordo de Paris, combatendo o desmatamento e assegurando padrões ambientais equivalentes a todos da União.
Outro elemento considerado de grande relevância para a população francesa são as violações aos direitos trabalhistas e o trabalho análogo a escravidão, existente nos países do Mercosul, e que podem ser estimulados pelo Acordo, já que garante uma fraca responsabilidade sobre essa temática[21], assim como a possibilidade de entrada de produtos com agrotóxicos considerados tóxicos para a União[22], e usados normalmente pelo bloco latino.
Sobre a possibilidade de ganhos e competição desleal pela produção barata do Mercosul, os países do bloco europeu se uniram para proporem uma mais rígida regulamentação e investigação caso tenha a suspeita de aumento súbito de importações estrangeiras no país[23], impondo limites e cotas[24] a não serem ultrapassados para além de 10% de volume já importado anualmente nos setores considerados estratégicos para França[25].
Apesar dos benefícios do acordo para o setor industrial, sua assinatura representa uma ameaça para o setor agropecuário, que embora não seja a principal renda da nação francesa, seus sindicatos são os mais organizados e os mais politicamente ativos, aptos para reagirem a qualquer descontentamento, representando uma ameaça ao governo de Macron.
Bibliografia
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*Nathan Hofmann
Bacharel em Ciências Sociais e bacharelando de Relações Internacionais pela Universidade Federal Fluminense (UFF). Pesquisador do grupo GEPSI UnB e do grupo NEXUS- UFRJ