Ana Sofia Guimarães Menezes*, Beatriz Stephany Carvalho da Silva**, Consuêlo Maria Braga Pierre Branco*** e José Carlos Guedes***
Breve histórico do Acordo de Associação UE-Mercosul
O Acordo de Associação entre a União Europeia (UE) e o Mercado Comum do Sul (Mercosul) possui um longo e complexo histórico de negociações, marcado por avanços graduais e sucessivos impasses no decorrer de cerca de vinte e cinco anos. As tratativas começaram oficialmente em 1999, quando os dois blocos decidiram iniciar conversações voltadas à liberalização comercial e à integração econômica. Desde então, o processo passou por diferentes fases, influenciado por mudanças políticas internas, disputas comerciais e divergências em torno de temas sensíveis, como subsídios agrícolas e padrões ambientais. O setor agrícola europeu, em particular, manifestou fortes resistências à abertura de mercado para produtos latino-americanos, o que contribuiu para a lentidão das negociações.
O avanço mais significativo ocorreu em junho de 2019, quando foi alcançado um “acordo de princípio” que concluiu as negociações da parte comercial do tratado. Esse marco foi celebrado como um passo histórico, mas a formalização não se concretizou nos anos seguintes. Persistiam divergências relacionadas às cláusulas ambientais, às salvaguardas agrícolas e à necessidade de compromissos mais rígidos em relação à proteção da Amazônia e ao cumprimento do Acordo de Paris. Essas tensões levaram o texto a permanecer em revisão técnica e política por um período prolongado, à espera de um contexto internacional mais favorável.
Nos anos mais recentes, a combinação de fatores geopolíticos e ambientais impulsionou a retomada das tratativas. O cenário de crescente protecionismo global, aliado à urgência das pautas climáticas e à necessidade de fortalecimento de alianças estratégicas, estimulou a aproximação entre os blocos. Em 6 de dezembro de 2024, a União Europeia e o Mercosul anunciaram oficialmente um acordo político que consolidava os termos finais do chamado Acordo de Parceria UE-Mercosul, encerrando simbolicamente um processo iniciado um quarto de século antes.
A etapa seguinte concentrou-se na formalização jurídica do texto. Em 3 de setembro de 2025, a Comissão Europeia apresentou as proposições formais para assinatura e conclusão dos instrumentos legais perante o Conselho e o Parlamento Europeu. Esse momento marca a preparação para a fase de ratificação pelos parlamentos nacionais e regionais, necessária para que o tratado entre em vigor. Assim, o acordo UE-Mercosul representa não apenas o resultado de 25 anos de negociações complexas, mas também um símbolo da tentativa de revitalizar o multilateralismo e a cooperação entre regiões historicamente interligadas por laços econômicos e políticos.
O Capítulo de Comércio e Desenvolvimento Sustentável (TSD)
Ancorado em três pilares – quais sejam: comércio, diálogo político e cooperação – o Acordo UE-Mercosul está dividido em 23 capítulos e diversos anexos [1]. Dentre os seus capítulos, merece destaque o Capítulo 18, intitulado “Trade and Sustainable Development” (TSD), o qual objetiva integrar o desenvolvimento sustentável às relações comerciais entre as Partes.
Em um contexto de crescente interdependência do comércio com o cumprimento de padrões ambientais, sociais e trabalhistas, esse capítulo trouxe à tona a preocupação da UE com as obrigações fincadas em instrumentos como o Acordo de Paris sobre o Clima, as Convenções da Organização Internacional do Trabalho (OIT) e os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) das Nações Unidas (ONU).
Nessa medida, tal capítulo trouxe dezessete artigos (18.1 a 18.17) contendo compromissos com o clima, meio ambiente, biodiversidade, pesca, cadeias produtivas e, por fim, com os direitos trabalhistas. Além disso, dispõe sobre mecanismos de resolução de controvérsias, prevendo consultas e a atuação de um panel of experts para examinar eventuais descumprimentos.
Durante as negociações do Acordo de Associação Birregional, emergiram reações complexas no bloco europeu, provenientes de diversos segmentos, com especial destaque para o presente capítulo TSD. As preocupações relativas à sustentabilidade, ao meio ambiente e aos padrões trabalhistas foram fatores determinantes para a oposição e para as demandas por maior rigor no texto final do acordo.
Particularidades em destaque na negociação do TSD
À época do anúncio do acordo preliminar, em 2019, múltiplos atores europeus (com França, Polônia e Itália como principais Estados opositores), incluindo organizações da sociedade civil e membros do Parlamento Europeu, consideraram insuficientes as disposições contidas no capítulo TSD. Nesse contexto, o setor agrícola francês notabilizou-se como uma veemente oposição ao acordo, primordialmente motivada por receios atinentes à concorrência e à disparidade nos padrões de produção [2].
A coalizão contrária ao acordo temia a entrada de importações de commodities sul-americanas a preços mais baixos. Uma crítica proeminente referia-se à ausência de um mecanismo robusto de solução de controvérsias, o que, na prática, limitaria a aplicação de sanções em caso de descumprimento das obrigações pactuadas. Em resposta a tais objeções, a Comissão Europeia buscou fortalecer as disposições de sustentabilidade e a exequibilidade do acordo. Em 2023, foi proposto um instrumento adicional (side letter) com o fito de detalhar e reforçar os compromissos do TSD, incluindo a menção ao Artigo 31 da Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados, metas para a redução do desmatamento e a possibilidade de aplicação de sanções como último recurso para violações de elementos essenciais do pacto [3].
Com a conclusão definitiva das negociações em dezembro de 2024, manteve-se o texto original do capítulo TSD, porém acrescido de dois novos anexos. Tais anexos versam sobre a cooperação para a promoção de bens sustentáveis e cadeias de valor verdes, além de obrigar as partes a agirem de boa-fé como signatárias do Acordo de Paris. Posteriormente, em 2025, a Comissão propôs a criação de um mecanismo de salvaguarda agrícola (medida ainda pendente de aprovação pelas instâncias europeias competentes) que permitiria a suspensão do acesso preferencial do Mercosul a determinados produtos agrícolas, como a carne bovina. O acionamento dessas salvaguardas seria considerado diante de um aumento superior a 10% nos volumes de importação ou de uma queda de preços em montante equivalente em um ou mais Estados-membros [4]. Comprovado o prejuízo aos respectivos setores, a UE poderia retirar as concessões tarifárias sobre os produtos em questão.
Os proponentes do acordo, como Alemanha e Espanha, sustentam que este representa uma via para compensar perdas comerciais decorrentes de choques externos e da polarização geopolítica global. O acordo posiciona o Mercosul como um mercado com significativo potencial de crescimento para os setores automobilístico, de maquinário e químico da União Europeia. Ademais, identifica o bloco sul-americano como um fornecedor estratégico de recursos minerais indispensáveis à transição energética, com destaque para o lítio. O tratado estipula, ainda, a facilitação do acesso a mercados e a aplicação de tarifas preferenciais a determinados produtos europeus.
Em suma, a recepção do acordo na UE reflete as disparidades entre interesses econômicos e necessidades setoriais. O processo de negociação demonstra a complexidade inerente à conciliação dos princípios do livre comércio com as prementes preocupações ambientais e sociais intra-bloco.
Estratégia de divisão do Acordo frente aos desafios da competência mista na UE
A entrada em vigor do acordo ainda depende da articulação entre diferentes intuições do bloco para garantir a sua aprovação. Isso porque, no âmbito da União Europeia, o processo de ratificação de acordos internacionais varia de acordo com as temáticas abordadas no texto final. Nesse sentido, quanto maior a abrangência da matéria tratada, mais complexo se torna o processo de aprovação do acordo.
Conforme já elucidado, o Acordo Mercosul-UE se tratava, inicialmente, de um acordo de livre comércio em stricto sensu, contudo – ao longo dos anos de negociação – foram adicionadas cláusulas cujo teor transcende a esfera comercial. O texto final apresentado aborda cortes tarifários, proteção de investimentos e faz alusão à saúde, à cultura e aos direitos sociais, o que adiciona ao acordo um viés político [5].
Essa amplitude de temas abre espaço para a classificação do acordo como misto, o que significa dizer que seus termos contém matérias tanto de competência exclusiva quanto compartilhada entre a União Europeia e seus Estados-membros. Conforme o Tratado de Lisboa, a repartição de competências entre o bloco e seus integrantes divide-se em três categorias principais: competências exclusivas da UE, competências compartilhadas e competências de apoio.
No caso do acordo em questão, há termos de evidente teor exclusivo, isto é, sobre os quais apenas a UE tem competência para legislar e implementar atos normativos. Este seria o caso do TSD, dado que, conforme o artigo 3º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia (TFUE), matérias concernentes à política comercial comum são de competência exclusiva da UE [6].
A competência compartilhada, por sua vez, refere-se aos domínios em que os Estados-membros podem adotar legislação própria – quando a UE não exerce ou optou por não exercer competência própria. Essa competência diz respeito, por exemplo, às matérias acerca do mercado interno, da política regional, da proteção ao consumidor, transporte, energia e demais temas expostos no artigo 4º do TFUE.
Ocorre que, uma vez classificado como misto, o acordo passa a ser de competência compartilhada, logo, exige uma aprovação dupla: do Parlamento Europeu e dos Parlamentos nacionais dos países-membros. É possível inferir, portanto, que tal categorização implicaria em um processo de ratificação mais longo e com mais riscos de falha, dado que seria necessária a anuência interna e específica de cada membro do bloco.
Diante desse cenário, a estratégia adotada pela Comissão Europeia é de dividir o acordo entre dois segmentos, um contendo a parte comercial – que exigiria apenas a aprovação do Parlamento Europeu – e outro com as demais previsões de cunho político. Desse modo, seria possível acelerar a ratificação das cláusulas propriamente comerciais e, como idealizado há mais de vinte anos, estabelecer a maior zona de livre comércio do planeta [7].
*Ana Sofia Guimarães Menezes
Bacharelanda em Relações Internacionais pela Universidade de Brasília (UnB). http://lattes.cnpq.br/8851953167168651. https://orcid.org/0009-0002-3811-2676. ana.guimaraes@aluno.unb.br.
**Beatriz Stephany Carvalho da Silva
Bacharelanda em Direito pela Universidade de Brasília (UnB). https://orcid.org/0009-0004-7100-6677. http://lattes.cnpq.br/0628056522594589. bstephanycs@gmail.com.
***Consuêlo Maria Braga Pierre Branco
Bacharelanda em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). http://lattes.cnpq.br/9121551496638338. https://orcid.org/0000-0002-9258-3922. consuelo.maria@ufpe.br
****José Carlos Guedes
Bacharelando em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). . https://orcid.org/0009-0005-4263-6079. http://lattes.cnpq.br/2359855338057670. carlos.guedes.711@ufrn.edu.br