Isabela Kerner de Melo*
Introdução
O Reino da Bélgica é uma monarquia constitucional federal de sistema multipartidário com três esferas de decisão: o governo federal, as três comunidades linguísticas (flamenga, francófona e germanófoba) e três regiões (Flandres, Bruxelas e Valônia) [1]. Representando 3,4% do PIB total da União Europeia, a Bélgica é uma grande produtora de fármacos, veículos e maquinários [2]. Apesar da produção agropecuária representar apenas 0,8% do seu PIB total, os setores agropecuários belgas têm peso importante na posição do país acerca do Acordo EU-Mercosul, especialmente no que tange as questões comerciais dispostas no Capítulo de Comércio e Desenvolvimento Sustentável.
A realidade política interna dentro da Bélgica, as divergências entre as regiões e seus parlamentos e a falta de posicionamento oficial firme do governo federal faz com que a posição belga frente ao Acordo seja analiticamente complexa. Assim, se faz importante analisar as nuances da política belga e os aspectos que moldam sua posição, assim como os agentes que são influentes acerca do posicionamento ao Acordo.
A Bélgica e o Acordo UE-Mercosul
O Reino da Bélgica é uma monarquia constitucional federal de sistema multipartidário com três esferas de decisão: o governo federal, as três comunidades linguísticas (flamenga, francófona e germanófona) e três regiões (Flandres, Bruxelas e Valônia). Representando 3,4% do PIB total da União Europeia (UE), a Bélgica é uma grande produtora de fármacos, veículos, maquinários. Com 11,8 milhões de habitantes, a população belga representa 2,62% da população total da EU, organização na qual foi parte ativa da sua integração desde seus primórdios. Como reconhecimento por sua participação na ratificação dos principais tratados europeus, como os tratados de Roma e Maastricht, a Bélgica foi escolhida para sediar os principais órgãos da União Europeia [1].
A economia belga é considerada de alta renda, com PIB per capita de 56.584 USD, superior à média da UE [2]. Caracterizada pela sua diversidade, o setor de serviços é predominante, representando 80% do PIB em 2024, com destaque aos segmentos financeiros e logísticos, impulsionados pelos bancos e pelo porto de Antuérpia, um dos corações do comércio internacional. O setor secundário, representando 17,58% do PIB, é marcado pela produção de químicos, máquinas, veículos, metalurgia e a indústria agroalimentar. O setor primário é caracterizado pela atividade pecuária intensiva e contribuiu em 0,8% no PIB belga [3] [4].
Nas relações comerciais com o Mercosul, a corrente comercial totalizou 8.6 bilhões de euros, representando 1,8% do comércio exterior da Bélgica. Os produtos belgas exportados incluem maquinários, químicos, combustíveis e outras tecnologias [6]. Já os países do Mercosul exportaram para a Bélgica produtos agrícolas como café, sucos e tabaco, sendo o Brasil e a Argentina os maiores parceiros comerciais dentro do bloco [3] A relação é, contudo, assimétrica, marcada por um déficit comercial belga devido ao maior peso das importações agrícolas.
Os setores belgas que mais se beneficiariam com o Acordo seriam da indústria química-farmacêutica, maquinários e tecnológicos, que refletem as exportações da Bélgica aos países do Mercosul. A diminuição das barreiras tarifárias aumentaria a competitividade dos produtos belgas e as exportações, gerando empregos nesses setores. Atualmente, por exemplo, medicamentos importados no Brasil podem ser tarifados em até 14% ou mais, e produtos químicos como carbonato de sódio são tributados em 20% [7] [8].
Já os setores que seriam prejudicados são os ligados ao agronegócio, principalmente os produtores de carne bovina. A Bélgica tem 35.000 fazendas e 200.000 belgas trabalham com a atividade agropecuária [9]. Estes produtores precisam seguir as rigorosas regras sanitárias da UE, o que deixam seus produtos mais caros em relação às commodities do Mercosul, que não passam por esse mesmo rigor. O Acordo pode levar à perda de competitividade da carne bovina belga e, no limite, ao fechamento de fazendas e desemprego em regiões agrícolas. Essas consequências podem gerar má repercussão na opinião pública, especialmente na Valônia, fomentando o regionalismo e prejudicando a unidade federal, já que o Parlamento de Valônia tem poder de veto na tomada de decisão.
O governo belga não manifestou uma posição definitiva sobre o Acordo, chegando somente a declarar que a Bélgica se absteria na votação, mesmo sem endossar o texto atual [10].
A Valônia é abertamente contra o acordo por preocupações com as desvantagens por conta de regulações e competição desleal para a agricultura da região, que detém 43% da sua terra voltada à atividade [11]. O Parlamento de Valônia adotou por unanimidade uma moção contra o rascunho do Acordo, com partidos de diferentes ideologias, como o liberal Movimento Reformador e o Partido Socialista, se unindo na oposição [12].
Já os parlamentos de Flandres e Bruxelas não chegaram a um consenso. Em Flandres, o apoio vem de partidos de direita liberais, como a Nova Aliança Flamenga, enquanto o partido ambientalista Verde se opõe [13]. O Parlamento de Bruxelas tem uma visão conjunta crítica, mas está aberto a conversas sobre alterações [14].
O Acordo não é um consenso entre os grupos políticos e eurodeputados belgas no Parlamento Europeu. No debate, há posições polarizadas, com a oposição sendo concentrada nos grupos ambientalistas e de centro-esquerda, enquanto o apoio ao acordo é mais evidente em grupos à direita e de centro flamengos.
O Grupo dos Verdes/Aliança Livre Europeia é veementemente contra o acordo, com figuras como a eurodeputada Saskia Bricmont sendo a porta-voz dessa frente, participando de eventos onde fala sobre o assunto e escrevendo sobre o Acordo em veículos de informação [15]. Já em contraste, o grupo dos Conservadores e Reformistas Europeus apoia fortemente o acordo, com o ex-eurodeputado Geert Bourgeois defendendo os benefícios econômicos do acordo ao longo do seu mandato [16]. Suas posições representam a divisão interna das regiões da Bélgica, como Valônia e Flandres, sobre o acordo.
A sociedade civil belga tem uma presença marcante no debate sobre o Acordo. A coalizão Stop EU-Mercosur, formada por ONGs e sindicatos agrícolas, se opõem firmemente ao Acordo por desconsiderar direitos sociais e ambientais fundamentais, além de promover a concorrência desleal [17] [18]. Esses grupos se manifestam contra o Acordo bloqueando estradas [19]. Eles exigem mecanismos vinculativos, como sanções, contra a violação desses direitos. Em contrapartida, o setor empresarial belga voltado às exportações é a favor do Acordo, defendendo o comércio aberto. Atores como a Federação de Empresas Belgas participam de missões econômicas a países do Mercosul, buscando estreitar laços comerciais [20].
Conclusão
A posição belga, à primeira vista cética e contrária ao Acordo, se faz em realidade multifacetada e fundamentada em diferentes graus de concordância e discordância, com a possibilidade de unanimidade dos três poderes de decisão sendo remota. Enquanto o governo federal não se manifesta de maneira firme sobre o Acordo, preferindo a abstenção, o Parlamento de Valônia é firme e unânime quanto a sua posição veementemente contrária ao Acordo. Nos demais parlamentos regionais, Flandres e Bruxelas, as posições também não são concretas, com lados favoráveis e contrários ressaltando benefícios e desvantagens diferentes, o que também reflete os interesses ideológicos de cada parte.
A divisão também se reflete na sociedade belga, com grupos ambientalistas, agropecuaristas e organizações não governamentais mostrando sua discordância ao Acordo através de manifestações, como o bloqueio de estradas. Já as indústrias se põem como favoráveis em razão aos eventuais ganhos com a diminuição de barreiras alfandegárias.
Sendo assim, a posição da Bélgica quando ao Acordo UE-Mercosul, em específico as partes comerciais, é um reflexo de suas divisões internas e da dificuldade de coesão entre as esferas de decisão, que precisam entrar em consenso para que o Acordo seja aprovado no país.
REFERÊNCIAS:
[1] EUROPEAN UNION. EU countries: Belgium. Disponível em: https://european-union.europa.eu/principles-countries-history/eu-countries/belgium_pt. Acesso em: 4 set. 2025.
[2] IMF. Belgium. Disponível em: https://www.imf.org/external/datamapper/profile/BEL. Acesso em: 4 set. 2025.
[3] EUROPEAN COMMISSION. Directorate-General for Trade. Factsheet: EU-Mercosur Partnership Agreement – Belgium. Disponível em: https://policy.trade.ec.europa.eu/eu-trade-relationships-country-and-region/countries-and-regions/mercosur/eu-mercosur-agreement/factsheet-eu-mercosur-partnership-agreement-belgium_en?utm_source=chatgpt.com. Acesso em: 4 set. 2025.
[4] TRADING ECONOMICS. Belgium Industry Value Added (% of GDP). Disponível em: https://tradingeconomics.com/belgium/industry-value-added-percent-of-gdp-wb-data.html. Acesso em: 7 set. 2025.
[5] TRADING ECONOMICS. Belgium Agriculture Value Added (% of GDP). Disponível em: [https://tradingeconomics.com/belgium/agriculture-value-added-percent-of-gdp-wb-data.html#:~:text=Agriculture%2C%20forestry%2C%20and%20fishing%2C%20value%20added%20(%25,%2D%20actual%20values%2C%20historical%20data%2C%20forecasts%20and](https://tradingeconomics.com/belgium/agriculture-value-added-percent-of-gdp-wb-
[6] TRADING ECONOMICS. Belgium Exports by Category. Disponível em: https://tradingeconomics.com/belgium/exports-by-category. Acesso em: 7 set. 2025.
[7] PODER360. Governo eleva tarifa de importação de 30 produtos químicos. 2025. Disponível em: https://www.poder360.com.br/poder-economia/governo-eleva-tarifa-de-importacao-de-30-produtos-quimicos/#:~:text=Com%20a%20decis%C3%A3o%2C%20a%20al%C3%ADquota,Associa%C3%A7%C3%A3o%20Brasileira%20da%20Ind%C3%BAstria%20Qu%C3%ADmica). Acesso em: 10 set. 2025.
[8] FAZCOMEX. Importação de medicamentos. Disponível em: https://www.fazcomex.com.br/comex/importacao-de-medicamentos/?utm_source=chatgpt.com. Acesso em: 8 set. 2025.
[9] STATBEL. Agricultural labour force comes from family circle. 2025. Disponível em: https://statbel.fgov.be/en/news/724-agricultural-labour-force-comes-family-circle. Acesso em: 7 set. 2025.
[10] EUROPEAN NEWSROOM. Mercosur: Belgium is heading towards abstention. 2025. Disponível em: https://europeannewsroom.com/mercosur-belgium-is-heading-towards-abstention/. Acesso em: 10 set. 2025.
[11] EUROPEAN COMMISSION. Directorate-General for Agriculture and Rural Development. CAP Strategic Plans: Belgium (Wallonia). Disponível em: https://agriculture.ec.europa.eu/cap-my-country/cap-strategic-plans/belgium-wallonia_en. Acesso em: 6 set. 2025.
[12] EUROGROUP FOR ANIMALS. Walloon Parliament adopts resolution against EU-Mercosur deal. 2025. Disponível em: https://www.eurogroupforanimals.org/news/walloon-parliament-adopts-resolution-against-eu-mercosur-deal. Acesso em: 6 set. 2025.
[13] N-VA. Van Dijck: L’accord commercial entre l’Union européenne et le Mercosur est synonyme. Disponível em: https://francais.n-va.be/actualite/van-dijck-laccord-commercial-entre-lunion-europeenne-et-le-mercosur-est-synonyme?utm_source=chatgpt.com. Acesso em: 6 set. 2025.
[14] MR BRUXELLES. Mercosur : Le groupe MR appelle à une réflexion plus approfondie et à une analyse objective des enjeux liés à l’accord UE-Mercosur. 3 fev. 2025. Disponível em: https://bruxelles.mr.be/2025/02/03/mercosur-le-groupe-mr-appelle-a-une-reflexion-plus-approfondie-et-a-une-analyse-objective-des-enjeux-lies-a-laccord-ue-mercosur/. Acesso em: 10 out. 2025.
[15] GREENS/EFA. Bad for Europe, dangerous for the planet. 2025. Disponível em: https://www.greens-efa.eu/en/article/press/bad-for-europe-dangerous-for-the-planet. Acesso em: 9 set. 2025.
[16] N-VA. Geert Bourgeois welcomes the trade agreement between the European Union and South American. Disponível em: https://english.n-va.be/news/geert-bourgeois-welcomes-the-trade-agreement-between-the-european-union-and-south-american. Acesso em: 6 set. 2025.
[17] GREENPEACE. Action against the EU-Mercosur Agreement in Brussels. Disponível em: https://media.greenpeace.org/archive/Action-against-the-EU-Mercosur-Agreement-in-Brussels-27MDHU1OZS4.html. Acesso em: 10 set. 2025.
[18] FEDERATION DES JEUNES AGRICULTEURS. FJA. Disponível em: https://fja.be/. Acesso em: 7 set. 2025.
[19] CNN BRASIL. Agricultores da Bélgica bloqueiam estradas em protesto contra acordo com Mercosul. 2025. Disponível em: https://www.cnnbrasil.com.br/internacional/agricultores-da-belgica-bloqueiam-estradas-em-protesto-contra-acordo-com-mercosul/. Acesso em: 4 set. 2025.
[20] THE BRUSSELS TIMES com BELGA. Princess Astrid and 170 Belgian businesses to visit Brazil. The Brussels Times, 22 nov. 2024. Disponível em: https://www.brusselstimes.com/1322408/princess-astrid-and-170-belgian-businesses-to-visit-brazil. Acesso em: 10 out. 2025.
*Isabela Kerner de Melo