Filipe Prado Macedo da Silva*
A presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, abriu seu discurso destacando duas preocupações globais apontadas pelo The Global Risks Report 2024, publicado pelo Fórum Econômico Mundial. A principal preocupação da comunidade empresarial global para os próximos dois anos é a “desinformação e notícias falsas (fake news)”, seguida de perto pela “polarização das sociedades”. De acordo com von der Leyen, tais preocupações são graves porque limitam a capacidade do mundo de enfrentar os outros grandes desafios globais como, por exemplo, as mudanças climáticas, os avanços tecnológicos, os conflitos regionais e os problemas econômicos.
Logo, existe um maior risco para a ordem global desde o pós-Segunda Guerra Mundial. “O nosso mundo está em uma era de conflito e confrontação, de fragmentação e medo. Pela primeira vez em gerações, o mundo não está apenas num único ponto de inflexão. Está em múltiplos pontos de inflexão, com riscos que se sobrepõem e que se agravam”, afirmou a presidente da Comissão Europeia.
Neste contexto, qual a saída para o futuro? Como superar tais desafios que não respeitam fronteiras? Para Ursula von der Leyen, as respostas imediatas (de curto prazo) e estruturais (de longo prazo) estão no próprio tema do Fórum Econômico Mundial de 2024, a saber: “Reconstruir a confiança”. Em outras palavras, é o momento de impulsionar a colaboração global não apenas no trabalho conjunto entre os países, mas principalmente no trabalho conjunto entre os setores público (as democracias) e privado (as empresas). A ideia é criar um “novo tecido conectivo” capaz de corresponder à dimensão dos novos desafios globais. E, neste sentido, a presidente da Comissão Europeia expressou bastante otimismo!
A partir daí, Ursula von der Leyen explanou como a União Europeia tem gerenciado riscos e traçado novos caminhos no que tange a invasão da Ucrânia, a transição energética e os avanços tecnológicos da Inteligência Artificial (IA).
A Ucrânia não caiu… e seu futuro é na União Europeia
Sobre a invasão da Ucrânia, de acordo com von der Leyen, a desinformação e as notícias falsas produzidas pela Rússia representam um risco grave às democracias europeias e ao modelo liberal de sociedade. Neste sentido, qual caminho a União Europeia adotou?
A União Europeia ficou ainda mais unida e colaborativa! Bruxelas não hesitou em fortalecer a resistência ucraniana. Militarmente, os países-membros da União Europeia têm buscado um fornecimento sustentado de armas e equipamentos militares para defender a Ucrânia e recuperar o seu território legítimo. Politicamente, a União Europeia abriu as negociações formais – em dezembro de 2023 – para a adesão da Ucrânia. E, financeiramente, o apoio da União Europeia deverá ser ainda mais previsível – de longo prazo – a partir de 2024[2]. Além disso, a presidente da Comissão Europeia frisou que a Finlândia já aderiu à Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) e, em breve, será a vez da Suécia.
Enquanto isto, na visão de von der Leyen, as informações reais revelam que a Rússia está falhando nos objetivos estratégicos, nas conquistas militares, nas capacidades econômicas e nas articulações diplomáticas. Resumindo, a Rússia está perdendo a guerra, e para von der Leyen, o futuro da Ucrânia é livre, independente e com a União Europeia.
Putin ameaçou com o gás… e a União Europeia acelerou a transição energética
Segundo Ursula von der Leyen, a invasão da Ucrânia antecipou a transição energética na União Europeia. Isto porque “Putin decidiu que tinha chegado o momento de chantagear diretamente a Europa, cortando o fornecimento de gás e utilizando a energia como arma”. Assim, os russos aumentaram a vulnerabilidade da União Europeia ao não encherem, de forma deliberada, os depósitos de gás até os níveis habituais. Ou seja, um risco grave à sobrevivência de milhões de europeus, especialmente durante os invernos, já que “uma de cada cinco unidades de energia” (1/5 ou 20%) na União Europeia utilizava gás importado da Rússia (em 2021). Neste contexto, qual foi a saída para a União Europeia?
Novamente, a União Europeia atuou em colaboração para retomar em suas próprias mãos o seu destino energético. Sendo assim, a União Europeia recorreu aos mercados abertos internacionais em busca de fornecedores alternativos de energia, além de redirecionar os fluxos de energia para os países-membros que mais precisavam dentro do Mercado Único Europeu. Porém, von der Leyen destacou que o mais importante foram as novas apostas na transição energética, com investimentos em tecnologias mais limpas, mais eficientes e mais renováveis. O resultado prático, segundo a Agência Internacional de Energia, é que a União Europeia – em 2023 – produziu “mais eletricidade a partir do vento e do sol do que a partir do gás da Rússia”. Em outras palavras, a importância do gás russo diminuiu – já em 2023 – para “uma de cada vinte unidades de energia” (1/20 ou 5%) na União Europeia.
Em suma, “a Europa realizou progressos reais na melhoria da resiliência do seu sistema energético”, concluiu a presidente da Comissão Europeia.
A IA pode ser uma ameaça… mas a União Europeia está preparada
O terceiro assunto abordado pelo discurso foi o da IA. Para von der Leyen, a fronteira entre o on-line (o virtual) e o off-line (o real) está cada vez mais tênue. E, diante dos novos avanços tecnológicos, como a nova era da IA generativa, isto pode ameaçar gravemente os valores democráticos, os padrões de competitividade e as regras da sociedade. Na prática, o risco grave está em torno da desinformação e das notícias/fatos falsos que a IA pode criar como, por exemplo, os discursos de ódio dirigidos a crianças e grupos vulneráveis ou a sua adoção antiética na saúde. Neste cenário, qual foi o caminho escolhido pela União Europeia?
Como uma “entusiasta da tecnologia”, Ursula von der Leyen afirmou que, desde o início do seu mandato, um dos seus propósitos principais era o de regulamentar a internet e os produtos/serviços tecnológicos. Assim, a União Europeia adotou de forma inovadora a Lei Europeia dos Serviços Digitais[3] – definindo as responsabilidades das grandes plataformas tecnológicas sobre o conteúdo que promovem e propagam – e já debate, desde 2021, a futura Lei Europeia de Inteligência Artificial[4] – criando orientações para o desenvolvimento e a implementação da IA.
Além disso, a presidente da Comissão Europeia ressaltou que a União Europeia está pronta para ser a pioneira global na corrida da adoção da IA. Ela citou que “a Europa tem talento. Existem cerca de 200 mil engenheiros de software na Europa com experiência em IA. É uma concentração maior do que nos Estados Unidos e na China”. Isto quer dizer que, na Europa, as grandes empresas/indústrias, as pequenas e médias empresas (PMEs) e, sobretudo, as startups terão apoio da União Europeia para desenvolver, treinar e testar os seus grandes modelos de IA. Por fim, von der Leyen frisou que, somente na Europa, será possível criar uma IA multilíngue em razão das enormes quantidades de dados em todas as 27 línguas oficiais da União Europeia.
A União Europeia como protagonista…
O balanço final do discurso de Ursula von der Leyen, a presidente da Comissão Europeia, é de que ela aponta, explicitamente, a União Europeia como protagonista nos três assuntos destacados. Ela afirmou que “a Europa está disposta a ter um papel-chave” e que, logo, “pode e deve assumir a liderança na definição das respostas globais”. Enfim, destacou que a União Europeia está mais forte e unida – e as eleições de 2024 para o Parlamento Europeu serão decisivas – para continuar apoiando a Ucrânia, para avançar e concretizar a transição energética e para regulamentar as novas tecnologias oriundas da IA.
[1] O Fórum Econômico Mundial acontece todos os anos, no mês de janeiro, na comuna suíça de Davos. É um dos mais importantes fóruns internacionais, reunindo as mais poderosas autoridades políticas, líderes sociais relevantes e grandes executivos de corporações multinacionais. Para ler o discurso completo (inglês) de Ursula von der Leyen, utilize o link: https://ec.europa.eu/commission/presscorner/detail/en/speech_24_221.
[2] Posteriormente ao discurso, em 1 de fevereiro de 2024, o Conselho Europeu aprovou um novo pacote de ajuda para a Ucrânia, no valor de € 50 bilhões, para o período de 2024 a 2027.
[3] Trata-se do Regulamento (UE) 2022/2065.
[4] Trata-se da Proposta de Regulamento 2021/0106(COD).
*Filipe Prado Macedo da Silva
Professor do Instituto de Economia e Relações Internacionais (IERI) da Universidade Federal de Uberlândia (UFU). Experto em Europa e União Europeia. Líder do “Conexão Bruxelas | Grupo de Estudo sobre Europa e União Europeia”. E-mail: filipe.prado@ufu.br